Rádio Nação Ruralista

domingo, 18 de março de 2012

O CARREIRO



João Henriques da silva*
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Tão logo Biri passou a se entender de gente, não largava o pai no seu oficio de carreiro. Era sua paixão, sentar-se na mesa do carro e ganhar as caatingas, no transporte de lenha para o forno de cal.
            Antes do amanhecer já estava de ouvido a escutar, sonhando os movimentos do pai nos preparativos para juntar a boiada. E no primeiro sinal, saltava da rede, calçava as apragatas de correia, lavava o rosto na bacia de flandre, apanhava o chapeuzinho de couro e ficava rondando.
            Quando os bois chegavam do pasto, já estava no terreiro. Pedia a benção ao pai, avisava que o café já havia fervido e a comida estava na mesa para quebrar o jejum.
            Seu Antonio Tetéu atrelava a boiada e entrava pensando no que ia fazer. Colocava, calmamente, o cuscuz fumegante no prato fundo com leite fumaçando e ficava como se estivesse esperando alguma coisa.
            - Come pai, senão esfria.
            Biri não começava antes do pai e ficava, às vezes, impaciente, sobretudo quando havia um assado de carne de bode ou um pedaço de jabá para forrar bem o estômago.
            - Olha, Biri, quem carreia não deve ter pressa. Tem que andar no passo dos bois.
Afinal, comiam. Tetéu acendia o cigarro de fumo de rolo, tomava as primeiras tragadas, pegava o facão, pendurava na cintura e gritava a boiada.
Dona Conceição ficava escutando o carro cantar até sumir na caatinga. Pela cantoria do carro sabia quando iam e quando voltavam. Botava o feijão macáçar no fogo e cuidava do arranjo da casa.
Depois disso, ia fazer renda na almofada de bilros. Sempre recebia encomendas que lhe davam algum dinheiro. Pouco, mas bem que servia.
As rodas de madeira, com os aros de ferro, chiavam no chão duro no pedregulho das trilhas. Enquanto enchia o carro, soltava as duas juntas de boi para irem pastando ali por perto. Biri se encarregava de vigiá-los.
- Trás as juntas Biri.
 Os bois já sabiam onde iam ficar. Canário e Azulão, os bois de coice, entravam primeiro. Eram mais treinados e possantes. Pintado e Careta, no cambão.
Os bois davam o primeiro impulso, erguendo o lombo e o carro, pesado, começava a rodar e a cantar pela caatinga afora.
Boi de carro de Tetéu nem apanhava, nem levava ferrão. Não havia tanta pressa assim.
A vara de ferrão não tinha agulhão. Bastava uma cutucada para alertar a boiada nos lugares mais difíceis. Todos os dias era aquele mesmo rojão, não faltava lenha para o cozimento das pedras de cal.
 A caatinga é que ia se esvaziando. Os machadeiros iam derrubando tudo. Exceto as Baraúnas, Paus-D’arco e Aroeiras que pudessem dar obra.
Mas era necessário fabricar cal para sobreviver naquele sertãozão de pouca chuva. Os campos iam ficando pelados, uma árvore aqui outra além. Mas não havia outro jeito. Seu José Deodato tinha pena daquilo, mas não tinha outra saída.
Como poderia viver toda aquela gente sem a quebra de pedras, do corte da lenha, dos transportes, os forneiros e os demais.
Quando olhava para os seus campos devastados, entristecia, mas desgraçadamente tinham que viver todos daquela consumição. E pensava como iria ser quando não houvesse mais paus para derrubar e lenha para queimar pedra. Eram feios demais aqueles campos vazios, o chão descoberto, com o lombo queimado.
E os vizinhos sempre aconselhando:
- Deixa José Deodato, essa derrubada. Para de fazer cal. Estais acabando com a propriedade. Já não tem nem folha para bode comer.
- Como posso minha gente. E as famílias que vivem disso. Quem vai lhe dar o que comer se não chove para criar lavouras. Eu sei, eu sei, mas o pior é parar.
A boiada do transporte de pedras terminava o dia toda manchada de sangue da ponta do ferrão. Descarnada, judiada, estropiada.
Seu José Deodato chamou o carreiro Damião:
- Por que esses bois estão assim?
- O senhor não quer pedra para queimar? Tenho que correr e o jeito é a ponta do ferrão! Não se pode alisar couro de boi. Nem fui eu quem inventou ferrão. Quem inventou é porque sabia o que fazia.
- Pois é. Entrega o carro a Tetéu. Ele é que vai manobrar com os dois. Ele bote quem achar melhor. Não admito uma barbaridade dessas. Pensas, cabra bruto, que os animais não sentem dor como a gente? Isto é desumano. Se quiseres continuar trabalhando vai para a boca da fornalha, Lá verás o que é bom.
Tetéu tomou conta do carro. Mandou dar um banho nos bois e tirar as pintas de sangue. Tomou a vara de ferrão e arrancou-lhe o agulhão.
Chamou o Capoeira e entregou o carro:
- Olha, em boi nem se bate, nem se fura. E quero vê-los iguais aos meus.
O cabra Damião ficou despeitado. O calor da fornalha queimava-lhe as pestanas. Tinha certeza que aquilo havia sido fuxicada do Tetéu. Jurava vingar-se. Preparou-se para isso.
Biri já era um rapazote fornido e ligeiro como um gato.
Damião estava espoletado. Dia a dia aumentava-lhe a sede de vingança. Certa feita, na hora da folga seguiu Tetéu. Queria pegar o bicho onde não houvesse alguém para acudi-lo. Apressou os passos e, no meio da caatinga alcançou Tetéu:
- Quero falar com você.
- Então vamos andando.
- Andando não, seu safado. Foi você que fez a fuxicada para o homem me tomar o carro. Sei que foi e não adianta negar.
E virou o cacete em Tetéu.
Tetéu não queria fazer uso do facão. Procurava se safar e encontrar um meio de defesa.
Biri viu aquilo espantado.
Tetéu poderia cortá-lo a facão e já estava destinado a isso, quando de repente viu o danado cair e Biri enfiar-lhe novamente a faca. Ia dar-lhe outra quando Tetéu gritou:
- Basta Biri.
- Pai, vamos acabar com esse peste.
 O cabra gemia e chorava. Pelo amor de Deus não me matem
Biri mostrou-lhe a ponta da faca e riscou-lhe a barriga.
- Vamos levar para a fazenda, Biri.
- Não pai, deixa esta desgraça apodrecer aí. Ninguém vem procurá-lo e os urubus vão fazer uma festa com ele... Nunca mais vai bater em pai de ninguém.
- Não façam isso. Levem-me. Juro como estou arrependido. E não falou mais nada. O diabo já o havia levado.
No dia seguinte os urubus começaram a baixar.
- Morreu bicho. Vão ver o que é.
- Patrão, é o safado do Damião, sem a cara. Deve ter estuporado.

·         O autor é pai de Grijalva Maracajá Henriques






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