Rádio Nação Ruralista

segunda-feira, 26 de março de 2012

O RAIZEIRO





João Henriques da Silva
(Em Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Nossa flora é muito rica em produtos medicinais. Há remédio para todos os males e é mais fácil faltar feijão ou farinha numa feira nordestina do que um especialista no comércio de meizinhas vegetais e de origem animal.
            Raízes, folhas, sementes, couro e dente de jacaré, guizo de cascavel e o diabo a quatro. Ninguém morrerá por falta de remédio e estimulantes populares.
            Uma banca na feira expõe a farmácia matuta. E não precisa ir ao consultório médico. Januário entende daquela bacafuzada toda. É só dizer a doença ou o problema. E existem remédios polivalentes. Outros específicos e receitados com a competente dieta.
            Para alguns é até proibido relacionamento com mulher. Quem não observar fielmente a dieta, não espera bom resultado. Há medicação também para tirar mandinga, curar doidice e gerar filhos em mulher estéril.
            Seu Padilha era curiosamente um freqüentador das bancas dos raizeiros. Ficava-se por ali, só para observar o receituário. E depois saia comentando.
            Certa feita chegou um sujeito meio desconfiado, olhou se havia gente por perto e contou sua história. Casado há três anos e a mulher não lhe dava um filhote. E a coitada se lamentava, - dizia o marido: E o pior é que a mulher botava culpa nele.
            - “Se eu tivesse me casado com outro, na certa teria um filho todo ano. Casei-me com um molenga”.
            - Não há dificuldade, meu amigo. Dou remédio para os dois. Não falha. É tiro e queda. E juntou num papel pitadas de vários ingredientes. – Pisa bem pisado, ponha ao fogo numa panelinha nova e ferva bem. Mas, veja bem, a panela tem que ser nova em folha. Depois coar e tomar três dias seguidos na hora de deitar. Tomem os dois, olhando um para o outro. Têm que beber ao mesmo tempo e nessa noite não toquem mais em comida nem água. Nessas noites, um não encosta no outro. Só na quarta noite se desejarem. Vão sentir quando o fortificante fizer efeito. Não é para forçar. Um espera pelo outro. Veja bem. Só quando os dois estiverem afiados... E fez um arzinho de riso.
            Pagou e saiu exultante.
            - Se não der certo desta vez, volte aqui que tenho coisa mais forte, mas, é remédio quase para defunto!
            O tempo foi se indo e mestre Januário nem mais se lembrava do matuto e até preferia não vê-lo. Já andava azucrinado de reclamações. E o seu interesse era vender, embolsar seu dinheirinho e o resto que fosse pentear macaco. Bem que podiam ver que aquelas porcarias não valiam nada. Mas o mundo estava cheio de Zé bedeguas. Em todo caso, às vezes as drogas faziam efeito e era isso o que lhe valia. O que tinha que fazer era arranjar desculpas. Certamente não reparou bem ou não cumpriu a dieta. E assim ia vivendo da ignorância da matutada. Algumas vezes até acontecia que gente importante, desiludida da medicina, recorria a ele. Então tomava mais cuidado. Aviava a receita com mais cautela.
            Quando menos esperava, o matuto botou a cara. Relembrou-lhe a consulta e não estava com cara de bom amigo.
            - Mas o que foi que aconteceu, meu amigo? Fiz o que pude. Se não deu resultado, foi uma exceção. Aquele xarope nunca falhou.
            - Nada disso, o senhor errou na dose.
            Januário tremia nas carnes. Dessa vez estava empresado mesmo.
            - É o que eu estou dizendo.
            - Sua mulher morreu? Afinal de contas não tenho culpa. É a primeira vez que isso acontece. Mais juro que não foi do remédio. O senhor se acalme.
            - Acalmar como, seu Januário. O senhor passou um remédio forte demais, vim aqui para dizer-lhe isso, afim de que não erre mais. Pensa que é brincadeira? A mulher...
            Januário encolheu-se todo. Sentiu-se perdido, já sentia um frio na barriga da ponta da faca.
            - É sim. É o que eu estou lhe dizendo!
            Januário se encostou a seu Padilha, como querendo proteger-se.
            - Isso não se faz seu Januário. Chegue mais perto para ouvir o resto.
            - Estou ouvindo, pode dizer homem!
            - O senhor sabe o que fez com a sua xaropada? Não, não sabe. Vai saber daqui a pouco. Com matuto não se brinca, seu Januário.
            - Acontece, homem de Deus.
            - Acontece, não! O senhor foi o grande culpado.
            Seu Padilha resolveu intervir. Seu Januário é meu velho conhecido. Um homem direito. De boa fé. Acalme-se e diga mesmo o que aconteceu.
            - Passou um remédio para ter um filho que minha mulher desejava e se culpava de mim. Contei tudo direitinho a seu Januário. O que fez? Passou remédio para os dois e foi um desastre completo. Em vez de nascer um menino, nasceram dois. Dois, dois meninos. Era somente um, um somente. E agora está lá o problema. O leite da mulher só dá para um menino e não tenho dinheiro pra comprar mais. Isso não se faz. Imagina se tem me dado o outro que ele disse que levanta defunto!... Teria nascido uma ninhada. Agora quero remédio para cortar carreira... E se falhar voltarei aqui para ajustar as contas.
            - Ah! Para isso, tenho especialidade. - Embrulhou cascas e sementes para torrar e beber uma garrafada. - Infalível. É só para o senhor. Beba de uma vez. Não precisa pagar.
            - Quero pagar para poder vir cobrar depois, se não fizer efeito.
            Januário sabia o que ia acontecer. Mudou de feira. Foi para outra região.
            - Dá notícia de seu Januário?
            - Não. Ando procurando todas as feiras. Nunca mais o vi. Desapareceu.
            - Talvez tenha até morrido. Aconteceu alguma coisa?
            - Pior ainda. Tomei a droga que ele me deu para não nascer mais menino e veio à desgraça. Brochei de uma vez. E a mulher me aperreando noite e dia. Além disso, já ameaçou em me largar, levando os dois meninos. Queria que ele me desse outro remédio para levantar as forças. E o safado sumiu!
            - Conforme-se meu velho. Quando o senhor saiu, ele me disse que o xarope que lhe receitara ia derrubá-lo para o resto da vida. Não havia mais cura... O jeito que tens, agora é esquecer de uma vez.
            - E a minha mulher, que anda toda assanhada?
            - Deixe ela se virar.
            - Virar como?
            - Ela sabe... Não precisa o senhor se preocupar. Quando a coisa adormece assim, pode perder a última esperança, meu velho.
            - E agora, como é que eu vou ficar?
            - Calmo e tranqüilo. Não tenha mais dúvida. Um chá de seu Januário é tiro e queda. E quando se cai assim de mau jeito, ninguém levanta mais. E prepara-se para passar abaixado nas portas.

            

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