GALDLINO CASCAVEL
Bem ao centro da Chapada da Borborema, região dos Cariris Velhos, no meio da Caatinga, uma casinha de taipa que parecia mais uma tapera. Para chegar até lá só existiam veredas pouco trilhadas. Ninguém gostava de pessoas por ali. Era, segundo se dizia, um ninho de cobras venenosas. Era lá que morava sozinho, o velho Galdino, comedor afamado de cascavel, a cobra mais venenosa do Sertão. Não fazia roça. Nada plantava. Sua profissão era o fabrico manual de cordas de Caroá, que ia vender em várias cidades, nos dias de feira, sentado no chão, com uma dúzia ou mais de peças de corda. À tiracolo num bisaco encardido, onde trazia farinha e pequenos rolos de cascavel assada ou torrada. A meninada passava por longe, olhando-o com a curiosidade de vê-lo comer sua especialidade.
Quando vendia o produto de seu artesanato rústico, botava o pé no caminho, já de volta, montado num jerico, o seu único possuído. Sozinho, como vivia, metido no meio da caatinga silenciosa e agreste, não lhe preocupava o resto do mundo. Nunca se chegou a saber de sua vida anterior.
Alguns pensavam em um retiro espontâneo, outros lhe atribuíram doidice e outros ainda achavam que era algum criminoso refugiado naquelas brenhas. – Certamente matou muita gente ou pertenceu a algum bando de cangaceiros.- Água para beber, trazia de longe, quando não chovia. A verdade é que levava uma vida tranqüila, socado naquelas lonjuras, onde nem se ouviam os galos do vizinho cantar. Sim, além do jumento de sua montaria, possuía uma cachorrinha rajada chamada Jararaca, sua companheira nas caçadas de tatu e cascavel. No faro de Jararaca, não escapava bicho.
E o velho Galdino já sabia de longe o bicho que ela acuava, pelo ganido. Pelo dia, ainda cedo, colhia folhas de caroá na caatinga. À tarde e à noite, desfibrava (descortiçava) e fabricava cordas. Para isso possuía o seu “engenho”. Entretanto à tardinha, ao anoitecer e pela madrugada fazia a caçada de suas cobras prediletas. Contavam que só as matava no dia de prepará-las. Trazia-as para casa, amarrava-as com um laço frouxo e poder de reza. Dali não saia. Sabia mundrungas, o que o fazia ainda mais respeitado e temido.
A casca do caroá era colocada por cima do telhado e em locais adequados para viveiro das “bichinhas”.
Galdino Cascavel estava totalmente identificado com aquele sistema de vida. Era um favor que lhe faziam não pondo os pés em sua casa. Ninguém iria modificar os seus hábitos. Que o deixassem com sua especialidade. Fazia suas caçadas a qualquer hora. Dependia de dispor de tempo. Era sua melhor distração. Galdino gosta de andar pelas caatingas com a cachorrinha Jararaca farejando cobras, tatu ou qualquer outro bicho. Certamente não era fácil descobri uma cascavel enrodilhada. Tornava-se relativamente fácil quando descobria o rastro das bichinhas. Conhecia perfeitamente, a direção. A posição dos fragmentos vegetais sobre o solo lhe indicava o rumo certo. O resto era com o faro de sua cachorrinha Jararaca.
Jararaca não se aproximava. Sabia o perigo que corria. Quando a localização tornava-se difícil, usava um espelho que logo refletia a “caça”.
Seguindo o rastro da cobra cautelosamente, tinha quase certeza de encontrá-la. E costumava dizer – “Está no papo”. Muitas vezes o esconderijo era um velho buraco de tatu ou de formigueiro. Cavava-o ou então ficava vigilante nos dias seguintes, quando a bicha deveria sair à tardinha. Quando a cascavel não havia feito uma boa presa, sairia logo, mas se o havia feito, somente algum tempo depois da digestão. Mas não havia problema. Estava engordando. Conhecia a idade das cascavéis pelo número de enrugas ou guizos do maracá. Na época da parição, respeitava as fêmeas. Eram geralmente de doze a mais cascavelzinhas que iriam aumentar o rebanho, por cada parição. Além disso tinha certo nojo de cobra choca.
Um dos locais de caça de maior rendimento era o morro do urubu. Coberto de macambira e xiquexique, cheio de locas de pedras, oferecia condições especiais para moradia.
Diziam que no morro moravam também grandes cobras de veado que pegava cabritos e até gente se facilitasse. Galdino Cascavel ansioso para pegar a menos uma. Teria carne seca para muito tempo. Mas sempre lhe faltou sorte. Contudo não abandonou a idéia de sempre esperar. Algumas pessoas afirmavam já ter visto.
Um dia chegaria a sua vez. E como quem espera sempre alcança, o velho Galdino teve um dia satisfeito o seu desejo. Já voltava da caçada, quando deu com o rastro de uma saindo do morro. Rastro recente. E foi seguindo cuidadosamente. Poderia ser laçado e estaria perdido. Confiava na cachorrinha Jararaca que andava sempre na frente. Ouviu-a acuar. Foi-se chegando e encontrou o cobrão com um bodinho seguro. O bichinho tremia apavorado. Ainda não o havia laçado. Malhou-lhe o cacete, até que a bicha o soltou. Fazia pena ver o coitado com os olhos assustados, sabendo que iria morrer. Somente depois de algum tempo começou a andar, berrando a procura do rebanho.
Cobrão. Dezoito palmos e meio. Arrastou-a para o rancho. Tirou-lhe o couro, rolou a bichona, mas, o sal era pouco para salgar tanta carne. Não havia outro jeito. Assaria sem salgar. Gostou da carne, embora um pouco mais dura do que a de cascavel. Também quantos anos deveriam ter aquele mostro. Secou o couro e levou à feira para vender. Apurou um bom dinheiro. Lamentava-se ser tão difícil de encontrá-las.
Muitos anos depois de ter se metido no meio daquela caatinga desadorada, Galdino Cascavel, arranjou uma companheira. E correu a notícia:
– Galdino Cascavel amancebou-se. Botou uma mulher dentro de casa. Foi medo de morrer sozinho. A velhota é igual a ele. Viver no meio das cobras e ter que come-las. Não pode deixar de ser doida.
Mas não demorou muito. Deu no pé. E o velho Galdino ficou novamente só. Já havia passado dos cem anos e continuava no mesmo regime de vida. Não adoecia nem tinha dores reumáticas. A carne de cobra curava tudo dizia, com quase cento e quinze anos, ainda lá estava sentado no meio da feira de Esperança, vendendo suas peças de corda de caroá e comendo cascavel assada.
- Olha, fulano, aquele ali é o Galdino Cascavel. Cento e quinze anos nos costados. Naquele bisaco, tem cobra assada e farinha. É o que come.
Hoje muita gente come cobra, mas, naqueles tempos era uma novidade, principalmente a cobra mais venenosa do sertão. Era uma especialidade rara.
Muita coisa contava-se daquele homem excepcional, que se tornou conhecido somente depois de espalhada à notícia de que comia cascavel. E como teria começado essas especialidade. Foi o velho Damião quem contou. Galdino era uma criatura como outra qualquer. Certo dia, durante uma bebedeira entre companheiros, mataram uma cascavel que teve a má sorte de aparecer. A pinga já andava alta. Quiseram apostar com quem comesse a cobra assada. Galdino topou a aposta. O apostador daria o salário da semana de trabalho. E a cobrar foi ao fogo com couro e tudo, menos a cabeça. E Galdino comeu-a tomando mais pinga. Gostou da carne e comeu mais do que esperavam. Cumprida a aposta o sujeito não quis pagar. Era brincadeira. E no paga, não paga, a faca de Galdino saiu da banhinha e antes que houvesse tempo para a defesa já o cabra estava no chão.
Galdino fugiu. Caiu na caatinga. O patrão do defunto deu ordem para pegá-lo de qualquer forma, o que nunca aconteceu. Acuado no meio da caatinga distante, Galdino não iria morrer de fome e comia o que lhe aparecesse. Com exceção de urubu. Assim também já era demais. E como havia gostado da carne maciça de cascavel, não lhe escapava uma. Também nunca mais bebera. O tempero era sal e um bom molho de pimenta malagueta.
Morreu de velho. Não de doença. O coração cansou e foi só. Sua longevidade devia-se à tranqüilidade em que vivia e ao clima saudável das caatingas da Serra da Borborema.
30 de janeiro de 1986
João Henriques da Silva (In Memoriam) 20 de setembro de 1901 – 16 de abril de 2003 (o autor é meu pai)
Nota: O personagem Galdino cascavel, aparece também em narrativas de José Américo de Almeida e de José Lins do Rêgo.
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