João Henriques da Silva *
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)
A cidade inteira sabia da fama de Polidoro, o conquistador. Grandalhão, rico e metido a valente. E ainda tinha o topete de andar comentando suas mais recentes conquistas. Ao certo não se sabia se eram verdadeiras ou se eram gabolice. O fato é que Polidoro era uma espécie de terror, e os pais de família e os maridos viviam de olho nele. Mesmo assim não se dava por achado. Até o padre da freguesia andava assustado e prevenido. Tinha em sua companhia, a irmã moça, um pedação de mulher que poderia cair nas armadilhas de Polidoro. Prometer-lhe casamento, enganar a moça e depois deixá-la ao léu.
- Olha Mariana, não queiras conversas com o Polidoro. É ricão, mas é um péssimo elemento. Segundo dizem, tem desvirtuado várias moças de família e fica por isto mesmo. Tenha medo do bicho. Não chegue perto dele. Seria horrível o teu nome envolvido nas cretinices daquele canalha. Mesmo que não seja verdade o que ele diz, não será fácil desfazer uma calúnia e o safadório é useiro e vezeiro nisto. Nem olhar para ele.
Sagaz como era não abusava de menores.
E só havia um meio que era fazê-lo desaparecer misteriosamente. Mas ninguém se atrevia a isto. Falavam a boca pequena e ia ficando nisto. Bastava a cara enferrujada de Polidoro, para meter medo. Junte-se a isto, o físico exagerado e a bazófia de brutamontes.
Na realidade, muita coisa era apenas conversa fiada para se engrandecer. Quando passava por uma rua já se temia que estivesse tramando um assalto à honra alheia.
Pedro Jacinto reclamava sempre que havia falta de homem na cidade. Tamanho não era documento.
- Tenho duas filhas, mas Deus queira que não surjam boatos sobre elas.
Polidoro soube da conversa e comentou:
- Nunca tive nada com aquelas duas gaiatas e aquele porroia anda a falar besteiras. Aquilo eu achato com duas tapas. Pois agora ele vai ver. Vou passar o garfo nas duas e ele não me vai achar ruim. Era só mesmo o que me faltava. Já sabe quem é Polidoro dos Santos!
Quem ouviu, correu a contar a Pedro jacinto, enfeitado ainda mais o fraseado.
- Deixa vir. Minhas meninas são pobres e sérias. Criadas como gente. Caso se meta para o lado de cá, irei tirar-lhe o sarro.
Polidoro era desabusado e botou-se para as meninas. Esperava-as quando iam para o trabalho, soltava indiretas jocosas para ir amaciando. As meninas contavam em casa e já estavam com receio de sair. Não queriam ver o pai envolvido em situações desagradáveis. Além de tudo era visível que levaria desvantagem.
- Como é o cabrão ainda continua?
- Ora, não nos deixa. Já hoje me chamou de meu bem e, de longe, propôs casamento à Mariana e acrescentou: - A qualquer uma das duas -. A gente procurando fugir e ele cercando. Já andamos com medo de que não nos queira forçar.
- Tem nada não. Mas não respondam nada nem parem. Um dia ele vai cansar. Sei que vocês não vão se deixar enganar.
No entanto, Pedro jacinto andava com uma pulga atrás da orelha. O bicho era atrevido, rico e viciado. Pelo que se ouvia dizer já deveria ter morrido há muito tempo.
- Olha, pai, ele hoje nos convidou para das um passeio. Daria bons presentes e se casaria com uma.
Pedro jacinto passou a noite remoendo desgraças. Não tinha mais para onde fugir. O sem vergonha andava mesmo atrás de suas filhas e não queria o nome delas na rua. Além de pobres, faladas, Deus que o livrasse.
Polidoro era homem de noitadas. Andava como um morcego atrás de chupar a honra de alguém.
Pedro Jacinto não queria complicações. Poderia fazer as coisas veladamente sem que em tempo algum se viesse, a saber. O miserável era cheio de inimigos e se saísse das ruas seria um alívio. Todos iriam gostar e ninguém havia de aparecer para lamentar.
Pedro Jacinto queria fazer a coisa bem feita. Carregou na espingarda lazarina até a boca, incluindo cabeças de pregos velhos enferrujados, chumbo grosso e esferas de rolamentos. Tinha até receio de que iria arrebentar os fechos da espingarda. O importante era esbagaçar o peito esquerdo do miserável. Também não queria perder a carga que preparara com tanto cuidado. Ficaria numa esquina e apertaria o gatilho à queima roupa, fazer um rombo maior do que a boca da noite.
Tomou posição e esperou emocionado. Iria fazer aquilo que todos esperavam, mas não tinham coragem de executar. Viu quando Polidoro vinha em direção à casa do Creudo, onde andava papando a filha. Havia de ser um disparo certeiro para não dar nem tempo de se mijar. Polidoro vinha de peito aberto, já antegozando a aventura. De espingarda engatilhada, Pedro Jacinto esperava a aproximação e no momento exato despejou-lhe a carga de chumbo. Polidoro caiu trancado e não fez mais do que estrebuchar um pouco e apagar-se para o resto da vida. Pedro Jacinto saiu calmamente na certeza de que suas filhas já poderiam transitar sem receio de nada.
Quando o dia amanheceu já havia gente na delegacia de polícia.
- Seu delegado, o seu Polidoro está lá num pé de muro de olho vidrado.
- O que, seu Polidoro?
- Sim senhor. Tive medo danado quando dobrei a esquina.
- E de que foi?
- Sei não, corri para cá, a fim de dar parte. Só sei que está duro.
O delegado apressou os passos para ver o “causo”. Polidoro, o brutamonte estava espichado no chão com os dentes de fora, os olhos duros e a boca aberta como uma latrina sem tampa.
- Era o que ele procurava. Findou achando. Vão avisar aos parentes.
A notícia encheu a cidade. Mataram o seu Polidoro, com um tiro no peito esquerdo. Um rombo danado. Quem foi, quem não foi, procuravam saber. O delegado não tinha dúvida. Foi alguém que ele abusou da filha ou da mulher. Quem foi mesmo jamais se saberá. Nem vale a pena, procurar. Também não se perdeu nada. Aliás, vai se perder uma cova no cemitério. Um traste daquele deveria ser exposto para os urubus, isto é, se tiver moela para triturar semelhante peste.
Á boca pequena surgiram os comentários. Só pode ter sido fulano ou sicrano. O nome de Pedro Jacinto não aparecia, mesmo porque não ouvira falar que houvesse bulido com as filhas e, além do mais, o Jacinto era um pobre de Cristo.
- É isto mesmo. Quem semeia vento colhe tempestade. Deixa pra lá. E bendita seja a mão que puxou o gatilho. Tirão bem empregado!
Para o enterro foram quatro gatos pingados. O delegado também não foi, pois bendizia a mão que dera a carga.
- Como é, seu delegado, descobriu alguma coisa?
- Descobri, sim. Foi um tiro de espingarda bem carregada e o disparo foi à queima roupa, para não falhar. Só sei disto e já é muito. É pena que tenham demorado tanto. Fez muita miséria e já me preocupava a moleza dessa gente. Nem me davam parte e nem agiam. Tinham medo. De qualquer forma, tardou, mas chegou. Um alívio...
- Pelo visto, minha gente, foi a polícia quem derrubou o Polidoro. O delegado nem dá bolas. É como se não houvesse um crime.
Pedro Jacinto não contou nada em casa e nem nunca deu qualquer demonstração de haver sido ele. Até ao contrário, lamentava o acontecimento. Fizeram uma covardia.
- Como é que se atira de traição. Não se lava honra assim. Ah! Se fosse comigo, iria enfrentá-lo no meio da rua para todo mundo assistir. Isto sim seria um gesto de coragem e de vingança.
Pedro Jacinto lavou bem e lubrificou a espingarda velha que havia tirado de cima do guarda-roupa, ainda meio enferrujada. Depois da ocorrência, com Polidoro já fedendo de baixo de sete palmos de terra suja do cemitério, à cidade voltou à tranqüilidade.
Pedro Jacinto adora andar pela cidade para ouvir os comentários. Fazia perguntas inocentes e ficava admirado de quem teve a coragem de fazer a limpeza.
- É, estava faltando um homem nesta terra. Eu mesmo para falar a verdade, preferia mudar-me a ter que enfrentar a onça.
Foi até bom que Deus, todo abençoado, não me tivesse dado coragem. Tirar uma vida de um próximo, só porque gostava de mulheres, Santo Deus! Todo ser vivo merece respeito. Do mosquito ao elefante. Graças a Virgem Santa e minhas filhas, nunca tive coragem de matar nem uma lagartixa.
Estou zelando esta espingarda velha por que foi de meu pai. Quero bem a ela. Na mão dele nunca negou fogo. Muito certeira. Era apontar, caiu. Coitado de quem estava a sua frente. Eu, felizmente, nem aprendi a fazer pontaria, graças à Virgem Mãe.
Rezem pela alma de seu Polidoro. Coitado!
Em 27.7.86