Rádio Nação Ruralista

terça-feira, 27 de março de 2012

O CONQUISTADOR




João Henriques da Silva *
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

            A cidade inteira sabia da fama de Polidoro, o conquistador. Grandalhão, rico e metido a valente. E ainda tinha o topete de andar comentando suas mais recentes conquistas. Ao certo não se sabia se eram verdadeiras ou se eram gabolice. O fato é que Polidoro era uma espécie de terror, e os pais de família e os maridos viviam de olho nele. Mesmo assim não se dava por achado. Até o padre da freguesia andava assustado e prevenido. Tinha em sua companhia, a irmã moça, um pedação de mulher que poderia cair nas armadilhas de Polidoro. Prometer-lhe casamento, enganar a moça e depois deixá-la ao léu.
            - Olha Mariana, não queiras conversas com o Polidoro. É ricão, mas é um péssimo elemento. Segundo dizem, tem desvirtuado várias moças de família e fica por isto mesmo. Tenha medo do bicho. Não chegue perto dele. Seria horrível o teu nome envolvido nas cretinices daquele canalha. Mesmo que não seja verdade o que ele diz, não será fácil desfazer uma calúnia e o safadório é useiro e vezeiro nisto. Nem olhar para ele.
 Sagaz como era não abusava de menores.
 E só havia um meio que era fazê-lo desaparecer misteriosamente. Mas ninguém se atrevia a isto. Falavam a boca pequena e ia ficando nisto. Bastava a cara enferrujada de Polidoro, para meter medo. Junte-se a isto, o físico exagerado e a bazófia de brutamontes.
Na realidade, muita coisa era apenas conversa fiada para se engrandecer. Quando passava por uma rua já se temia que estivesse tramando um assalto à honra alheia.
Pedro Jacinto reclamava sempre que havia falta de homem na cidade. Tamanho não era documento.
- Tenho duas filhas, mas Deus queira que não surjam boatos sobre elas.
Polidoro soube da conversa e comentou:
- Nunca tive nada com aquelas duas gaiatas e aquele porroia anda a falar besteiras. Aquilo eu achato com duas tapas. Pois agora ele vai ver. Vou passar o garfo nas duas e ele não me vai achar ruim. Era só mesmo o que me faltava. Já sabe quem é Polidoro dos Santos!
Quem ouviu, correu a contar a Pedro jacinto, enfeitado ainda mais o fraseado.
- Deixa vir. Minhas meninas são pobres e sérias. Criadas como gente. Caso se meta para o lado de cá, irei tirar-lhe o sarro.
Polidoro era desabusado e botou-se para as meninas. Esperava-as quando iam para o trabalho, soltava indiretas jocosas para ir amaciando. As meninas contavam em casa e já estavam com receio de sair. Não queriam ver o pai envolvido em situações desagradáveis. Além de tudo era visível que levaria desvantagem.
- Como é o cabrão ainda continua?
- Ora, não nos deixa. Já hoje me chamou de meu bem e, de longe, propôs casamento à Mariana e acrescentou: - A qualquer uma das duas -. A gente procurando fugir e ele cercando. Já andamos com medo de que não nos queira forçar.
- Tem nada não. Mas não respondam nada nem parem. Um dia ele vai cansar. Sei que vocês não vão se deixar enganar.
No entanto, Pedro jacinto andava com uma pulga atrás da orelha. O bicho era atrevido, rico e viciado. Pelo que se ouvia dizer já deveria ter morrido há muito tempo.
- Olha, pai, ele hoje nos convidou para das um passeio. Daria bons presentes e se casaria com uma.
Pedro jacinto passou a noite remoendo desgraças. Não tinha mais para onde fugir. O sem vergonha andava mesmo atrás de suas filhas e não queria o nome delas na rua. Além de pobres, faladas, Deus que o livrasse.
Polidoro era homem de noitadas. Andava como um morcego atrás de chupar a honra de alguém.
Pedro Jacinto não queria complicações. Poderia fazer as coisas veladamente sem que em tempo algum se viesse, a saber. O miserável era cheio de inimigos e se saísse das ruas seria um alívio. Todos iriam gostar e ninguém havia de aparecer para lamentar.
Pedro Jacinto queria fazer a coisa bem feita. Carregou na espingarda lazarina até a boca, incluindo cabeças de pregos velhos enferrujados, chumbo grosso e esferas de rolamentos. Tinha até receio de que iria arrebentar os fechos da espingarda. O importante era esbagaçar o peito esquerdo do miserável. Também não queria perder a carga que preparara com tanto cuidado. Ficaria numa esquina e apertaria o gatilho à queima roupa, fazer um rombo maior do que a boca da noite.
 Tomou posição e esperou emocionado. Iria fazer aquilo que todos esperavam, mas não tinham coragem de executar. Viu quando Polidoro vinha em direção à casa do Creudo, onde andava papando a filha. Havia de ser um disparo certeiro para não dar nem tempo de se mijar. Polidoro vinha de peito aberto, já antegozando a aventura. De espingarda engatilhada, Pedro Jacinto esperava a aproximação e no momento exato despejou-lhe a carga de chumbo. Polidoro caiu trancado e não fez mais do que estrebuchar um pouco e apagar-se para o resto da vida. Pedro Jacinto saiu calmamente na certeza de que suas filhas já poderiam transitar sem receio de nada.
Quando o dia amanheceu já havia gente na delegacia de polícia.
- Seu delegado, o seu Polidoro está lá num pé de muro de olho vidrado.
- O que, seu Polidoro?
- Sim senhor. Tive medo danado quando dobrei a esquina.
- E de que foi?
- Sei não, corri para cá, a fim de dar parte. Só sei que está duro.
O delegado apressou os passos para ver o “causo”. Polidoro, o brutamonte estava espichado no chão com os dentes de fora, os olhos duros e a boca aberta como uma latrina sem tampa.
- Era o que ele procurava. Findou achando. Vão avisar aos parentes.
A notícia encheu a cidade. Mataram o seu Polidoro, com um tiro no peito esquerdo. Um rombo danado. Quem foi, quem não foi, procuravam saber. O delegado não tinha dúvida. Foi alguém que ele abusou da filha ou da mulher. Quem foi mesmo jamais se saberá. Nem vale a pena, procurar. Também não se perdeu nada. Aliás, vai se perder uma cova no cemitério. Um traste daquele deveria ser exposto para os urubus, isto é, se tiver moela para triturar semelhante peste.
Á boca pequena surgiram os comentários. Só pode ter sido fulano ou sicrano. O nome de Pedro Jacinto não aparecia, mesmo porque não ouvira falar que houvesse bulido com as filhas e, além do mais, o Jacinto era um pobre de Cristo.
- É isto mesmo. Quem semeia vento colhe tempestade. Deixa pra lá. E bendita seja a mão que puxou o gatilho. Tirão bem empregado!
Para o enterro foram quatro gatos pingados. O delegado também não foi, pois bendizia a mão que dera a carga.
- Como é, seu delegado, descobriu alguma coisa?
- Descobri, sim. Foi um tiro de espingarda bem carregada e o disparo foi à queima roupa, para não falhar. Só sei disto e já é muito. É pena que tenham demorado tanto. Fez muita miséria e já me preocupava a moleza dessa gente. Nem me davam parte e nem agiam. Tinham medo. De qualquer forma, tardou, mas chegou. Um alívio...
- Pelo visto, minha gente, foi a polícia quem derrubou o Polidoro. O delegado nem dá bolas. É como se não houvesse um crime.
Pedro Jacinto não contou nada em casa e nem nunca deu qualquer demonstração de haver sido ele. Até ao contrário, lamentava o acontecimento. Fizeram uma covardia.
- Como é que se atira de traição. Não se lava honra assim. Ah! Se fosse comigo, iria enfrentá-lo no meio da rua para todo mundo assistir. Isto sim seria um gesto de coragem e de vingança.
Pedro Jacinto lavou bem e lubrificou a espingarda velha que havia tirado de cima do guarda-roupa, ainda meio enferrujada. Depois da ocorrência, com Polidoro já fedendo de baixo de sete palmos de terra suja do cemitério, à cidade voltou à tranqüilidade.
Pedro Jacinto adora andar pela cidade para ouvir os comentários. Fazia perguntas inocentes e ficava admirado de quem teve a coragem de fazer a limpeza.
- É, estava faltando um homem nesta terra. Eu mesmo para falar a verdade, preferia mudar-me a ter que enfrentar a onça.
Foi até bom que Deus, todo abençoado, não me tivesse dado coragem. Tirar uma vida de um próximo, só porque gostava de mulheres, Santo Deus! Todo ser vivo merece respeito. Do mosquito ao elefante. Graças a Virgem Santa e minhas filhas, nunca tive coragem de matar nem uma lagartixa.
 Estou zelando esta espingarda velha por que foi de meu pai. Quero bem a ela. Na mão dele nunca negou fogo. Muito certeira. Era apontar, caiu. Coitado de quem estava a sua frente. Eu, felizmente, nem aprendi a fazer pontaria, graças à Virgem Mãe.
Rezem pela alma de seu Polidoro. Coitado!

Em 27.7.86






segunda-feira, 26 de março de 2012

O RAIZEIRO





João Henriques da Silva
(Em Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Nossa flora é muito rica em produtos medicinais. Há remédio para todos os males e é mais fácil faltar feijão ou farinha numa feira nordestina do que um especialista no comércio de meizinhas vegetais e de origem animal.
            Raízes, folhas, sementes, couro e dente de jacaré, guizo de cascavel e o diabo a quatro. Ninguém morrerá por falta de remédio e estimulantes populares.
            Uma banca na feira expõe a farmácia matuta. E não precisa ir ao consultório médico. Januário entende daquela bacafuzada toda. É só dizer a doença ou o problema. E existem remédios polivalentes. Outros específicos e receitados com a competente dieta.
            Para alguns é até proibido relacionamento com mulher. Quem não observar fielmente a dieta, não espera bom resultado. Há medicação também para tirar mandinga, curar doidice e gerar filhos em mulher estéril.
            Seu Padilha era curiosamente um freqüentador das bancas dos raizeiros. Ficava-se por ali, só para observar o receituário. E depois saia comentando.
            Certa feita chegou um sujeito meio desconfiado, olhou se havia gente por perto e contou sua história. Casado há três anos e a mulher não lhe dava um filhote. E a coitada se lamentava, - dizia o marido: E o pior é que a mulher botava culpa nele.
            - “Se eu tivesse me casado com outro, na certa teria um filho todo ano. Casei-me com um molenga”.
            - Não há dificuldade, meu amigo. Dou remédio para os dois. Não falha. É tiro e queda. E juntou num papel pitadas de vários ingredientes. – Pisa bem pisado, ponha ao fogo numa panelinha nova e ferva bem. Mas, veja bem, a panela tem que ser nova em folha. Depois coar e tomar três dias seguidos na hora de deitar. Tomem os dois, olhando um para o outro. Têm que beber ao mesmo tempo e nessa noite não toquem mais em comida nem água. Nessas noites, um não encosta no outro. Só na quarta noite se desejarem. Vão sentir quando o fortificante fizer efeito. Não é para forçar. Um espera pelo outro. Veja bem. Só quando os dois estiverem afiados... E fez um arzinho de riso.
            Pagou e saiu exultante.
            - Se não der certo desta vez, volte aqui que tenho coisa mais forte, mas, é remédio quase para defunto!
            O tempo foi se indo e mestre Januário nem mais se lembrava do matuto e até preferia não vê-lo. Já andava azucrinado de reclamações. E o seu interesse era vender, embolsar seu dinheirinho e o resto que fosse pentear macaco. Bem que podiam ver que aquelas porcarias não valiam nada. Mas o mundo estava cheio de Zé bedeguas. Em todo caso, às vezes as drogas faziam efeito e era isso o que lhe valia. O que tinha que fazer era arranjar desculpas. Certamente não reparou bem ou não cumpriu a dieta. E assim ia vivendo da ignorância da matutada. Algumas vezes até acontecia que gente importante, desiludida da medicina, recorria a ele. Então tomava mais cuidado. Aviava a receita com mais cautela.
            Quando menos esperava, o matuto botou a cara. Relembrou-lhe a consulta e não estava com cara de bom amigo.
            - Mas o que foi que aconteceu, meu amigo? Fiz o que pude. Se não deu resultado, foi uma exceção. Aquele xarope nunca falhou.
            - Nada disso, o senhor errou na dose.
            Januário tremia nas carnes. Dessa vez estava empresado mesmo.
            - É o que eu estou dizendo.
            - Sua mulher morreu? Afinal de contas não tenho culpa. É a primeira vez que isso acontece. Mais juro que não foi do remédio. O senhor se acalme.
            - Acalmar como, seu Januário. O senhor passou um remédio forte demais, vim aqui para dizer-lhe isso, afim de que não erre mais. Pensa que é brincadeira? A mulher...
            Januário encolheu-se todo. Sentiu-se perdido, já sentia um frio na barriga da ponta da faca.
            - É sim. É o que eu estou lhe dizendo!
            Januário se encostou a seu Padilha, como querendo proteger-se.
            - Isso não se faz seu Januário. Chegue mais perto para ouvir o resto.
            - Estou ouvindo, pode dizer homem!
            - O senhor sabe o que fez com a sua xaropada? Não, não sabe. Vai saber daqui a pouco. Com matuto não se brinca, seu Januário.
            - Acontece, homem de Deus.
            - Acontece, não! O senhor foi o grande culpado.
            Seu Padilha resolveu intervir. Seu Januário é meu velho conhecido. Um homem direito. De boa fé. Acalme-se e diga mesmo o que aconteceu.
            - Passou um remédio para ter um filho que minha mulher desejava e se culpava de mim. Contei tudo direitinho a seu Januário. O que fez? Passou remédio para os dois e foi um desastre completo. Em vez de nascer um menino, nasceram dois. Dois, dois meninos. Era somente um, um somente. E agora está lá o problema. O leite da mulher só dá para um menino e não tenho dinheiro pra comprar mais. Isso não se faz. Imagina se tem me dado o outro que ele disse que levanta defunto!... Teria nascido uma ninhada. Agora quero remédio para cortar carreira... E se falhar voltarei aqui para ajustar as contas.
            - Ah! Para isso, tenho especialidade. - Embrulhou cascas e sementes para torrar e beber uma garrafada. - Infalível. É só para o senhor. Beba de uma vez. Não precisa pagar.
            - Quero pagar para poder vir cobrar depois, se não fizer efeito.
            Januário sabia o que ia acontecer. Mudou de feira. Foi para outra região.
            - Dá notícia de seu Januário?
            - Não. Ando procurando todas as feiras. Nunca mais o vi. Desapareceu.
            - Talvez tenha até morrido. Aconteceu alguma coisa?
            - Pior ainda. Tomei a droga que ele me deu para não nascer mais menino e veio à desgraça. Brochei de uma vez. E a mulher me aperreando noite e dia. Além disso, já ameaçou em me largar, levando os dois meninos. Queria que ele me desse outro remédio para levantar as forças. E o safado sumiu!
            - Conforme-se meu velho. Quando o senhor saiu, ele me disse que o xarope que lhe receitara ia derrubá-lo para o resto da vida. Não havia mais cura... O jeito que tens, agora é esquecer de uma vez.
            - E a minha mulher, que anda toda assanhada?
            - Deixe ela se virar.
            - Virar como?
            - Ela sabe... Não precisa o senhor se preocupar. Quando a coisa adormece assim, pode perder a última esperança, meu velho.
            - E agora, como é que eu vou ficar?
            - Calmo e tranqüilo. Não tenha mais dúvida. Um chá de seu Januário é tiro e queda. E quando se cai assim de mau jeito, ninguém levanta mais. E prepara-se para passar abaixado nas portas.

            

segunda-feira, 19 de março de 2012

PANTALEÃO




João Henriques da Silva *
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

                Pantaleão não era brincadeira. Honesto trabalhador, inteligente e disposto. Tinha, entretanto, uma parte fraca: medo de coisas do outro mundo. Não ia a enterros nem passava perto de portão de cemitério. Falassem em tudo, menos em defunto e assombração. Essas coisas arrepiavam-lhe os cabelos e o deixavam inquieto. Fazia força para se controlar, mas o negócio estava enraizado lá dentro. Quando falavam em doente já ficava pensando no defunto. Dormia com a luz acesa e só andava à noite acompanhado. Quando lhe diziam que era só impressão, ficava calado, considerando que era inútil querer tapeá-lo. Talvez por causa dessa obsessão, tinha sonhos horríveis, acordava a mulher e perdia o sono. Algumas vezes chamava as crianças para juntinho de si. Só, é que não ficava.
Certa feita morreu um anjinho e teve que ir ao enterro. Apavorado, mas foi. Pisou à porta do cemitério como se estivesse pisando em cima de destroços humanos. Era dali que saiam as almas penadas, que ia à noite, com fala fanhosa, pedir rezas ou visitar os amigos de quem não queriam se separar. Chovia fino e, sem parar, encharcando a terra já molhada. Chegou a hora crucial do enterro. Antes de descer o caixãozinho à última morada, Pantaleão, tomou-se de coragem e resolveu olhar a fundura da cova, onde iria ficar aquela criaturinha sem crimes, sem pecados, a pura inocência.
Aproximou-se bem daquele buracão de sete palmos de fundura. E aconteceu o inesperado. A barreira da cova quebrou-se e Pantaleão caiu dentro. Para quem já era supersticioso até a raiz do cabelo, aquilo era a última coisa que poderia acontecer a um cristão. Rapidamente encolheu-se e sem se apoiar em nada, de um salto pulou fora da cova. Não houve jeito, mesmo naquele transe, senão rir todo mundo. Pantaleão não sabia para quem olhar nem o que fazer. Estava um homem liquidado.
Chamou um parente e foi saindo sem pisar no chão. Quando readquiriu a fala e já distante do cemitério, confessou: - Hoje amanheci azarado. Desta não vou escapar. Nunca aconteceu isso com pessoa nenhuma. Isso é um aviso. A cova me chamando. E agora?
- Foi uma simples coincidência, Pantaleão. Aconteceria com qualquer um que se abeirasse da cova como fizestes.
- Aí é que está. Uma atração do destino. Emburaco brevemente. Onde já se viu uma coisa dessas...
- Não confunda as coisas, Pantaleão! Precisa perder esse medo do além. Vou lhe dizer sinceramente. Não acredito em almas, nem coisas do outro mundo. Isso tudo é conversa fiada. De quem morre só se salva a energia que se desprendem do corpo. Depois da morte é o nada e o esquecimento total. Foram os padrecas que inventaram limbo para os pagãos, purgatório para quem morre em pecado venial e inferno no duro, para quem se acaba com pecado mortal. Pura bobagem. É simplesmente uma forma cômoda de enganar os bestas e viver a tripa forra. Tira essas idéias da cabeça. Cuida na tua vida, dorme tranquilo e perde o medo do que não existe. Ora bolas. Já viu alguma alma, alguma assombração, seu bobo. Mete isto na cabeça.
- Rapaz! Cair dentro de uma cova não é brincadeira... A história antiga e moderna não registra um fato igual. Fui eu o único, o único entende?
- Cova de anjo, Pantaleão. É até uma graça de Deus. É um felizardo.
- Bela felicidade. Ia me enterrando vivo, se não fosse tão ligeiro, tenham jogado terra em cima.
- Quem anda com medo do que não viu nem existe, deve andar biruta. Procura um bom médico. Deixa dessas impressões idiotas.
Fim

domingo, 18 de março de 2012

O CARREIRO



João Henriques da silva*
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Tão logo Biri passou a se entender de gente, não largava o pai no seu oficio de carreiro. Era sua paixão, sentar-se na mesa do carro e ganhar as caatingas, no transporte de lenha para o forno de cal.
            Antes do amanhecer já estava de ouvido a escutar, sonhando os movimentos do pai nos preparativos para juntar a boiada. E no primeiro sinal, saltava da rede, calçava as apragatas de correia, lavava o rosto na bacia de flandre, apanhava o chapeuzinho de couro e ficava rondando.
            Quando os bois chegavam do pasto, já estava no terreiro. Pedia a benção ao pai, avisava que o café já havia fervido e a comida estava na mesa para quebrar o jejum.
            Seu Antonio Tetéu atrelava a boiada e entrava pensando no que ia fazer. Colocava, calmamente, o cuscuz fumegante no prato fundo com leite fumaçando e ficava como se estivesse esperando alguma coisa.
            - Come pai, senão esfria.
            Biri não começava antes do pai e ficava, às vezes, impaciente, sobretudo quando havia um assado de carne de bode ou um pedaço de jabá para forrar bem o estômago.
            - Olha, Biri, quem carreia não deve ter pressa. Tem que andar no passo dos bois.
Afinal, comiam. Tetéu acendia o cigarro de fumo de rolo, tomava as primeiras tragadas, pegava o facão, pendurava na cintura e gritava a boiada.
Dona Conceição ficava escutando o carro cantar até sumir na caatinga. Pela cantoria do carro sabia quando iam e quando voltavam. Botava o feijão macáçar no fogo e cuidava do arranjo da casa.
Depois disso, ia fazer renda na almofada de bilros. Sempre recebia encomendas que lhe davam algum dinheiro. Pouco, mas bem que servia.
As rodas de madeira, com os aros de ferro, chiavam no chão duro no pedregulho das trilhas. Enquanto enchia o carro, soltava as duas juntas de boi para irem pastando ali por perto. Biri se encarregava de vigiá-los.
- Trás as juntas Biri.
 Os bois já sabiam onde iam ficar. Canário e Azulão, os bois de coice, entravam primeiro. Eram mais treinados e possantes. Pintado e Careta, no cambão.
Os bois davam o primeiro impulso, erguendo o lombo e o carro, pesado, começava a rodar e a cantar pela caatinga afora.
Boi de carro de Tetéu nem apanhava, nem levava ferrão. Não havia tanta pressa assim.
A vara de ferrão não tinha agulhão. Bastava uma cutucada para alertar a boiada nos lugares mais difíceis. Todos os dias era aquele mesmo rojão, não faltava lenha para o cozimento das pedras de cal.
 A caatinga é que ia se esvaziando. Os machadeiros iam derrubando tudo. Exceto as Baraúnas, Paus-D’arco e Aroeiras que pudessem dar obra.
Mas era necessário fabricar cal para sobreviver naquele sertãozão de pouca chuva. Os campos iam ficando pelados, uma árvore aqui outra além. Mas não havia outro jeito. Seu José Deodato tinha pena daquilo, mas não tinha outra saída.
Como poderia viver toda aquela gente sem a quebra de pedras, do corte da lenha, dos transportes, os forneiros e os demais.
Quando olhava para os seus campos devastados, entristecia, mas desgraçadamente tinham que viver todos daquela consumição. E pensava como iria ser quando não houvesse mais paus para derrubar e lenha para queimar pedra. Eram feios demais aqueles campos vazios, o chão descoberto, com o lombo queimado.
E os vizinhos sempre aconselhando:
- Deixa José Deodato, essa derrubada. Para de fazer cal. Estais acabando com a propriedade. Já não tem nem folha para bode comer.
- Como posso minha gente. E as famílias que vivem disso. Quem vai lhe dar o que comer se não chove para criar lavouras. Eu sei, eu sei, mas o pior é parar.
A boiada do transporte de pedras terminava o dia toda manchada de sangue da ponta do ferrão. Descarnada, judiada, estropiada.
Seu José Deodato chamou o carreiro Damião:
- Por que esses bois estão assim?
- O senhor não quer pedra para queimar? Tenho que correr e o jeito é a ponta do ferrão! Não se pode alisar couro de boi. Nem fui eu quem inventou ferrão. Quem inventou é porque sabia o que fazia.
- Pois é. Entrega o carro a Tetéu. Ele é que vai manobrar com os dois. Ele bote quem achar melhor. Não admito uma barbaridade dessas. Pensas, cabra bruto, que os animais não sentem dor como a gente? Isto é desumano. Se quiseres continuar trabalhando vai para a boca da fornalha, Lá verás o que é bom.
Tetéu tomou conta do carro. Mandou dar um banho nos bois e tirar as pintas de sangue. Tomou a vara de ferrão e arrancou-lhe o agulhão.
Chamou o Capoeira e entregou o carro:
- Olha, em boi nem se bate, nem se fura. E quero vê-los iguais aos meus.
O cabra Damião ficou despeitado. O calor da fornalha queimava-lhe as pestanas. Tinha certeza que aquilo havia sido fuxicada do Tetéu. Jurava vingar-se. Preparou-se para isso.
Biri já era um rapazote fornido e ligeiro como um gato.
Damião estava espoletado. Dia a dia aumentava-lhe a sede de vingança. Certa feita, na hora da folga seguiu Tetéu. Queria pegar o bicho onde não houvesse alguém para acudi-lo. Apressou os passos e, no meio da caatinga alcançou Tetéu:
- Quero falar com você.
- Então vamos andando.
- Andando não, seu safado. Foi você que fez a fuxicada para o homem me tomar o carro. Sei que foi e não adianta negar.
E virou o cacete em Tetéu.
Tetéu não queria fazer uso do facão. Procurava se safar e encontrar um meio de defesa.
Biri viu aquilo espantado.
Tetéu poderia cortá-lo a facão e já estava destinado a isso, quando de repente viu o danado cair e Biri enfiar-lhe novamente a faca. Ia dar-lhe outra quando Tetéu gritou:
- Basta Biri.
- Pai, vamos acabar com esse peste.
 O cabra gemia e chorava. Pelo amor de Deus não me matem
Biri mostrou-lhe a ponta da faca e riscou-lhe a barriga.
- Vamos levar para a fazenda, Biri.
- Não pai, deixa esta desgraça apodrecer aí. Ninguém vem procurá-lo e os urubus vão fazer uma festa com ele... Nunca mais vai bater em pai de ninguém.
- Não façam isso. Levem-me. Juro como estou arrependido. E não falou mais nada. O diabo já o havia levado.
No dia seguinte os urubus começaram a baixar.
- Morreu bicho. Vão ver o que é.
- Patrão, é o safado do Damião, sem a cara. Deve ter estuporado.

·         O autor é pai de Grijalva Maracajá Henriques






sexta-feira, 16 de março de 2012

O MEU PAÍS




Orlando Tejo*



Um país que criança elimina,
Que não ouve o clamor dos esquecidos,
Onde nunca os humildes são ouvidos
E uma elite sem Deus é quem domina;
Que permite um estrupo em cada esquina
E a certeza da dúvida infeliz;
Onde quem tem razão baixa a cerviz
E massacram-se o nego e a mulher,
Pode ser o país de quem quiser,
Mas não é, com certeza, o meu País!

Um país onde as leis são descartáveis
Por ausência de códigos corretos,
Com quarenta milhões de analfabetos
E maior multidão de miseráveis;
Um país onde os homens confiáveis
Não têm vez, não têm voz nem diretriz,
Mas corruptos têm vez e voz e bis
E o respaldo de estímulo incomum,
Pode ser o país de qualquer um,
Mas não é, com certeza, o meu País!

Um país que perdeu a identidade,
Sepultou o idioma português
E aprendeu a falar pornofonês
Aderindo à global vulgaridade;
Um país que não tem capacidade
De saber o que pensa e o que diz,
Que não pode esconder a cicatriz
De seu Povo de bem que vive mal,
Pode ser o país do carnaval,
Mas não é, com certeza, o meu País!

Um país que seus índios discrimina
E a Ciência e as Artes não respeita,
Um país que inda morre de maleita
Por atraso geral da medicina;
Um país onde escola não ensina
E hospital não dispõe de Raio-X,
Onde a gente dos morros é feliz
Se tem água de chuva e luz do sol,
Pode ser o país do futebol,
Mas não é, com certeza, o meu País!

 Um país que é doente e não se cura,
Triunfal candidato ao quinto mundo,
Que do poço fatal chegou ao fundo
Sem saber emergir na noite escura;
Um país que engoliu a compostura
Atendendo a políticos sutis
Que dividem o Brasil e mil brasis
Pra melhor assaltar de ponta a ponta,
Pode ser o país do faz-de-conta,
Mas não é, com certeza, o meu país!

Um país que dizima sua flora
Ensejando o avanço do deserto,
Pois não salva o riacho descoberto
Que no leito precário se estertorar;
Um país que cantou e hoje chora
Pelo bico do último concriz,
Que florestas destrói pela raiz
E a grileiros de fora entrega o chão,
Pode ser que ainda seja uma nação,
Mas não é, com certeza, o meu país!

*Tejo, Orlando.
As noites do Alvorada: Via Crucis do Caboclo Misterioso/Orlando Tejo.
Recife: Cia Pacifica, 1997.







domingo, 11 de março de 2012

O homem que tapeou Antônio Silvino





Era uma vez... Dois primos, Inácio e Severino, brejeiros dos bons, que viajavam semanas a fio, de vinte a trinta quilômetros por dias com os burros carregados, só parando para alimentação frugal e à noite para o cochilo mal acomodado, sempre debaixo de árvores que dessem uma boa sombra, e os protegessem do sereno da noite, como os Juazeiros, Mulungus, Trapiazeiros, Umbuzeiros e Craibeiras pelo Agreste Nordestino: Brejo, Curimataú, Seridó, Cariri e Sertão com uma tropa de burros: dois de sela e doze animais de carga, com seus arreios aonde dependurados iam à malotagem, bruacas ou os sacos com as mercadorias, sempre cobertas com lonas, fora a burra madrinha, velha e sabida que encabeçava e escolhia os caminhos melhores, sempre enfeitada com fitas e um sininho característico ou mesmo um chocalho com um som bem peculiar, onde os outros animais a seguiam quer de dia ou à noite; desses burros, dois eram animais com a troçada do dia a dia: comida, redes, água, capote feito de algodão grosso, onde matava o frio e os protegias da chuvas (poncho),  panelas, fumo de corda, cachaça, trempe de ferro para cozinhar, lona, sabão e o diabo a sete. A comida se resumia, quase que carne de charque, ou carne seca (chamada de sol) farinha de mandioca, queijo de coalho, toucinho, sal, café, açúcar, arroz, temperos, feijão dos dois tipos: o mulatinho e o de corda, xerém de milho e um tipo mais fino para fazer cuscuz.
Saiam sempre de Riacho Fundo, fazenda localizada entre Esperança e Areial na Paraíba, Próxima da fazenda Arara do meu avô Manoel Henriques (Virgolino) da silva.
Viviam nas propriedades de seus familiares, onde há muito se produzia feijão de arranca (mulatinho), fumo, que era transformado em “fumo de rolo”, pronto para ser usado, erva doce, batatinha inglesa, agave, café e mais uma finidade de alimentos para sua sobrevivência e para a comercialização.
Muitos tropeiros também partiam do Brejo Paraibano, levando estas mercadorias como também o açúcar mascavo, a cachaça e a rapadura, produzida nos engenhos do Brejo.
 No entanto, esses dois meus parentes, há muito tempo só negociavam com feijão, café e fumo, lá pras bandas de Parelhas, Ouro Branco, Macaíba e adjacências no Rio Grande do Norte. Numa dessas viagens, levaram apenas feijão e fumo de corda, não conseguiram vender o feijão, pois naquele ano o inverno fora bom e quase todo mundo tinha de sobra para comer e vender. Venderam o fumo ligeiro e Severino se decidiu tentar vender os sacos de feijão mulatinho na cidade de Natal-RN.
Disse para o Inácio – Vá levar os burros descarregados pra casa, avise a família meu destino e venha se encontrar comigo por lá.
Assim o fez. Um seguiu com seis burros carregados e o outro desceu em direção a Esperança para fazer o que haviam combinado.
Inácio logo que pode, empreendeu viagem, num burro bom, meeiro que o cabra chegava a cochilar em cima da sela. Num dia e meio espirrou na capital Rio-grandense, foi direto para o local marcado. Ficou meio contrariado por não encontrá-lo, danou-se a procurar pelos arrabaldes: locais onde sempre se reuniam os tropeiros, depois de desocupados, como ainda se ver hoje nos dias de feiras nas cidades do interior, (sempre um campo de futebol, em terreno abandonado). Bares, bodegas, lupanares, casas de jogos, pensões baratas, currais onde sempre os animais esperavam, pacientemente, pelos donos, a um preço módico, com direito apenas a água e a garantia de que de lá ninguém os roubariam.
Passou-se um dia e nada do primo. Tirou onda de detetive. Começou a fazer perguntas e nada de notícias, já aperreado, passado quase uma semana, mandou avisar pra família do acontecido e que iria continuar nas buscas. Era um mistério medonho. O homem desaparecera sem deixar rastros. Como o primo tinha vontade de conhecer o norte, ele logo pensou que esse seria o rumo que tomara, para vender o danado do feijão, achando que por ali não havia encontrado negócio, seguiu viagem, e na primeira cidade, teve finalmente notícias de um tropeiro com seus burros. Era só esta notícia que tivera, podia ser mentira mais também verdade, resolveu tirar suas dúvidas, pois já faziam mais de duas semanas da separação dos dois. Seguiu em frente e nada de alcançá-lo.
Notícia aqui e notícia acolá, depois de três meses chegou à cidade de Sena Madureira no Acre, local onde estava havendo migração de nordestinos para trabalhar com a extração da borracha, ficou por lá, sempre procurando o primo e trabalhando juntamente com aquela multidão de desgarrados da sorte. Lutou durante uns três a quatro anos até que resolveu voltar sem o parente, - o mato havia aberto e fechado e engolido o homem – e, como já havia amealhado um bom dinheiro. Fez finca pé de lá e em pouco tempo chegava ao seu velho Brejo, com o coração partido com o sumiço do amigo. Não sabia como se apresentar e narrar aos familiares do desaparecido. Havia de fato enviado cartas, mas falar de cara a cara era outra coisa, olhar nos olhos dos pais matutos e dizer que seu filho não existia era outra coisa mais dura de enfrentar.
Trazia consigo bastante dinheiro e muitas armas, frutos do seu trabalho como seringueiro.
A fama de “rico” logo chegou aos ouvidos de muita gente, inclusive de grupos de cangaceiros, que naquela época perambulavam entre o Brejo e o Cariri Paraibano como: Antonio Silvino, João de Banda, Nêgo Zé Luiz de Queimadas, João Pichaco e tantos outros desocupados.
Um dia lhe contaram que Antônio Silvino e João de Banda vinham tomar o dinheiro e as armas que possuía. Mudou-se da propriedade onde vivia e foi pra bandas de Pocinhos numa fazenda chamada Amaro. Enterrou as referidas armas e escondeu o dinheiro suado que havia conseguindo na luta do ouro branco e contra a malária (impaludismo), no Norte do País, na cidade de Sena Madureira no Acre. Dormia de dia e vigiava de noite, uma bela noite chegou Silvino com sua tropa, cutucaram tudo, reviraram todos os caixotes da casa fizeram ameaças a uns moradores velhos, mataram de tiros várias galinhas e nada de dinheiro e armas.
O danado do bicho também era sabido e jurou que Antônio Silvino não tomaria seus anos de trabalho.
Mudou-se para outra propriedade de nome Algodão perto de Soledade PB; a velha raposa logo descobriu o seu paradeiro e foi bater lá, mas o cabra dizia que “seguro morreu de velho e prevenido ainda estava vivo”, procurou ainda mais se esconder e despistar os cabras que viviam envenenados por dinheiro e armas.
Cada vez mais os cangaceiros ficavam com raiva, por não achar o que não era dele e desta vez, Antonio Silvino, fez o que não era seu costume. Inácio havia ido a fazenda Arara providenciar um enxoval de um sobrinho que havia nascido deixando um menino tomando conta da casa.        
Antonio Silvino emboscou-se com sua tropa atrás de umas pedras, esperando uma oportunidade; nisso viu o menino botar a cabeça fora de casa e aí pegou o molecote, vendo mais uma vez que havia dado o bote perdido, com raiva, deu uns riscos de punhal nos couros do pequeno vigia para que servissem de recado, matando dessa vez umas vacas que estavam no curral atrás da casa.
Inácio fugiu novamente, desta vez foi se embrenhar no lugar chamado Lajedo Vermelho, onde moravam outros parentes, perto da cidade de Soledade. Dizendo sempre que o que era dele ninguém botava a mão. Dessa vez quase que os cabras o pegavam, escapou por um triz. Aprendeu a lição e parou de se gabar e contar lorotas sobre quem era e o que tinha.
Nesse ínterim havia conhecido uma moça de nome Mônica do Município de Santa Luzia, formosa e rica, namorou, noivaram e casaram. Nunca mais Antônio Silvino teve notícias dele. Comprou duas fazendas: Canoa e Poço Salgado, juntamente com seu cunhado (Anísio) e com o dinheiro que tinha guardado montaram uma desencaroçadeira (bolandeira) e prensa de algodão, comprava e vendia gado, negociava com peles de animais num pequeno curtume que tinha na fazenda, possuía caminhões e um automóvel tornando-se um dos mais importantes chefes político e poderoso do lugar. (Ribinha). Antônio Silvino levou a breca, mas não pegou o seu dinheiro nem suas armas.
Muito tempo depois, voltava da feira, montado numa burra branca e pequena, mas que voavam pelas estradas pedregosas da região, enquanto seus filhos e meu tio vinham no caminhão com as mercadorias negociadas na feira, quando - já velho – subiu os degraus da casa e sua esposa abriu a porta contente e satisfeita, se surpreendeu com um cabra, que já o vinha seguindo, o atacando pelas costas, dando-lhe uma gravata com um punhal na mão, era um monstro de forte, dominando-o totalmente, a esposa tentou socorrê-lo, mas o satanás plantou-lhe um pontapé que a deixou desmaiada, nisso entra meu tio com seus dois primos e vendo aquela cena horrível, pegou uma trave de miolo de Aroeira que estava atrás da porta, danou na nuca do assaltante derrubando-o, o bicho ainda ficou ciscando no chão e imediatamente os outros tiraram suas facas e fizeram o resto do serviço. Mas, como era dia claro, engancharam o negrão pela gola da camisa no armador e esperaram que anoitecesse, para no silêncio e no escuro da madrugada, sem que ninguém visse, pudessem carregá-lo numa rede e jogá-lo num serrote que havia distante dali uma meia légua, num lugar quase inacessível.
Conto essa história dos meus parentes, hoje, porque já se passaram mais de cem anos e os personagens já não existem mais e nunca souberam quem era o bandido que tentou roubar o velho e cansado Brejeiro Inácio.







             Túmulo de Antonio Silvino no Cemitério Monte Santo em Campina Grande PB



GALDLINO CASCAVEL

            Bem ao centro da Chapada da Borborema, região dos Cariris Velhos, no meio da Caatinga, uma casinha de taipa que parecia mais uma tapera. Para chegar até lá só existiam veredas pouco trilhadas. Ninguém gostava de pessoas por ali. Era, segundo se dizia, um ninho de cobras venenosas. Era lá que morava sozinho, o velho Galdino, comedor afamado de cascavel, a cobra mais venenosa do Sertão. Não fazia roça. Nada plantava. Sua profissão era o fabrico manual de cordas de Caroá, que ia vender em várias cidades, nos dias de feira, sentado no chão, com uma dúzia ou mais de peças de corda. À tiracolo num bisaco encardido, onde trazia farinha e pequenos rolos de cascavel assada ou torrada. A meninada passava por longe, olhando-o com a curiosidade de vê-lo comer sua especialidade.
            Quando vendia o produto de seu artesanato rústico, botava o pé no caminho, já de volta, montado num jerico, o seu único possuído. Sozinho, como vivia, metido no meio da caatinga silenciosa e agreste, não lhe preocupava o resto do mundo. Nunca se chegou a saber de sua vida anterior.
            Alguns pensavam em um retiro espontâneo, outros lhe atribuíram doidice e outros ainda achavam que era algum criminoso refugiado naquelas brenhas. – Certamente matou muita gente ou pertenceu a algum bando de cangaceiros.- Água para beber, trazia de longe, quando não chovia. A verdade é que levava uma vida tranqüila, socado naquelas lonjuras, onde nem se ouviam os galos do vizinho cantar. Sim, além do jumento de sua montaria, possuía uma cachorrinha rajada chamada Jararaca, sua companheira nas caçadas de tatu e cascavel. No faro de Jararaca, não escapava bicho.
            E o velho Galdino já sabia de longe o bicho que ela acuava, pelo ganido. Pelo dia, ainda cedo, colhia folhas de caroá na caatinga. À tarde e à noite, desfibrava (descortiçava) e fabricava cordas. Para isso possuía o seu “engenho”. Entretanto à tardinha, ao anoitecer e pela madrugada fazia a caçada de suas cobras prediletas.             Contavam que só as matava no dia de prepará-las. Trazia-as para casa, amarrava-as com um laço frouxo e poder de reza. Dali não saia. Sabia mundrungas, o que o fazia ainda mais respeitado e temido.
            A casca do caroá era colocada por cima do telhado e em locais adequados para viveiro das “bichinhas”.
            Galdino Cascavel estava totalmente identificado com aquele sistema de vida. Era um favor que lhe faziam não pondo os pés em sua casa. Ninguém iria modificar os seus hábitos. Que o deixassem com sua especialidade. Fazia suas caçadas a qualquer hora. Dependia de dispor de tempo. Era sua melhor distração. Galdino gosta de andar pelas caatingas com a cachorrinha Jararaca farejando cobras, tatu ou qualquer outro bicho. Certamente não era fácil descobri uma cascavel enrodilhada. Tornava-se relativamente fácil quando descobria o rastro das bichinhas. Conhecia perfeitamente, a direção. A posição dos fragmentos vegetais sobre o solo lhe indicava o rumo certo. O resto era com o faro de sua cachorrinha Jararaca.
            Jararaca não se aproximava. Sabia o perigo que corria. Quando a localização tornava-se difícil, usava um espelho que logo refletia a “caça”.
            Seguindo o rastro da cobra cautelosamente, tinha quase certeza de encontrá-la. E costumava dizer – “Está no papo”. Muitas vezes o esconderijo era um velho buraco de tatu ou de formigueiro. Cavava-o ou então ficava vigilante nos dias seguintes, quando a bicha deveria sair à tardinha. Quando a cascavel não havia feito uma boa presa, sairia logo, mas se o havia feito, somente algum tempo depois da digestão. Mas não havia problema. Estava engordando. Conhecia a idade das cascavéis pelo número de enrugas ou guizos do maracá. Na época da parição, respeitava as fêmeas. Eram geralmente de doze a mais cascavelzinhas que iriam aumentar o rebanho, por cada parição. Além disso tinha certo nojo de cobra choca.
            Um dos locais de caça de maior rendimento era o morro do urubu. Coberto de macambira e xiquexique, cheio de locas de pedras, oferecia condições especiais para moradia.
            Diziam que no morro moravam também grandes cobras de veado que pegava cabritos e até gente se facilitasse. Galdino Cascavel ansioso para pegar a menos uma. Teria carne seca para muito tempo. Mas sempre lhe faltou sorte. Contudo não abandonou a idéia de sempre esperar. Algumas pessoas afirmavam já ter visto.
            Um dia chegaria a sua vez. E como quem espera sempre alcança, o velho Galdino teve um dia satisfeito o seu desejo. Já voltava da caçada, quando deu com o rastro de uma saindo do morro. Rastro recente. E foi seguindo cuidadosamente. Poderia ser laçado e estaria perdido. Confiava na cachorrinha Jararaca que andava sempre na frente. Ouviu-a acuar. Foi-se chegando e encontrou o cobrão com um bodinho seguro. O bichinho tremia apavorado. Ainda não o havia laçado. Malhou-lhe o cacete, até que a bicha o soltou. Fazia pena ver o coitado com os olhos assustados, sabendo que iria morrer. Somente depois de algum tempo começou a andar, berrando a procura do rebanho.
             Cobrão. Dezoito palmos e meio. Arrastou-a para o rancho. Tirou-lhe o couro, rolou a bichona, mas, o sal era pouco para salgar tanta carne. Não havia outro jeito. Assaria sem salgar. Gostou da carne, embora um pouco mais dura do que a de cascavel. Também quantos anos deveriam ter aquele mostro. Secou o couro e levou à feira para vender. Apurou um bom dinheiro. Lamentava-se ser tão difícil de encontrá-las.
            Muitos anos depois de ter se metido no meio daquela caatinga desadorada, Galdino Cascavel, arranjou uma companheira. E correu a notícia:
            – Galdino Cascavel amancebou-se. Botou uma mulher dentro de casa. Foi medo de morrer sozinho. A velhota é igual a ele. Viver no meio das cobras e ter que come-las. Não pode deixar de ser doida.
             Mas não demorou muito. Deu no pé. E o velho Galdino ficou novamente só. Já havia passado dos cem anos e continuava no mesmo regime de vida. Não adoecia nem tinha dores reumáticas. A carne de cobra curava tudo dizia, com quase cento e quinze anos, ainda lá estava sentado no meio da feira de Esperança, vendendo suas peças de corda de caroá e comendo cascavel assada.
            - Olha, fulano, aquele ali é o Galdino Cascavel. Cento e quinze anos nos costados.  Naquele bisaco, tem cobra assada e farinha. É o que come.
            Hoje muita gente come cobra, mas, naqueles tempos era uma novidade, principalmente a cobra mais venenosa do sertão. Era uma especialidade rara.
            Muita coisa contava-se daquele homem excepcional, que se tornou conhecido somente depois de espalhada à notícia de que comia cascavel. E como teria começado essas especialidade. Foi o velho Damião quem contou. Galdino era uma criatura como outra qualquer. Certo dia, durante uma bebedeira entre companheiros, mataram uma cascavel que teve a má sorte de aparecer. A pinga já andava alta. Quiseram apostar com quem comesse a cobra assada. Galdino topou a aposta. O apostador daria o salário da semana de trabalho. E a cobrar foi ao fogo com couro e tudo, menos a cabeça. E Galdino comeu-a tomando mais pinga. Gostou da carne e comeu mais do que esperavam. Cumprida a aposta o sujeito não quis pagar. Era brincadeira. E no paga, não paga, a faca de Galdino saiu da banhinha e antes que houvesse tempo para a defesa já o cabra estava no chão.
            Galdino fugiu. Caiu na caatinga. O patrão do defunto deu ordem para pegá-lo de qualquer forma, o que nunca aconteceu. Acuado no meio da caatinga distante, Galdino não iria morrer de fome e comia o que lhe aparecesse. Com exceção de urubu. Assim também já era demais. E como havia gostado da carne maciça de cascavel, não lhe escapava uma. Também nunca mais bebera. O tempero era sal e um bom molho de pimenta malagueta.
            Morreu de velho. Não de doença. O coração cansou e foi só. Sua longevidade devia-se à tranqüilidade em que vivia e ao clima saudável das caatingas da Serra da Borborema.

30 de janeiro de 1986
João Henriques da Silva (In Memoriam) 20 de setembro de 1901 – 16 de abril de 2003 (o autor é meu pai)





Nota: O personagem Galdino cascavel, aparece também em narrativas de José Américo de Almeida e de José Lins do Rêgo.