Rádio Nação Ruralista

segunda-feira, 9 de abril de 2012



EU E A ARANHA*
Robério Maracajá Henriques**
17/09/1929 – 08/06/2000

            Quase três horas da manhã, sento-me para escrever esta crônica e uma aranha miúda, pernas finas, interrompe a teia, no canto da parede e me olha furiosa. Deixa de

ser besta, aranha. Eu sei que não posso fazer uma teia igual a tua, mas tenho um bocado de teias na vida e no coração. São mais douradas que a tua. Quatro filhos, nove netos, uma esposa e tu aí tão sozinha. Pegando moscas enquanto eu agarro sonhos.
            Eu tenho mais de trinta cachimbos e tu nem sabes fumar. Podes dirigir os dois carros que tenho na garagem? Já leste os oito mil livros que tenho nas estantes? Não me olhes, assim, furiosa, que não tens um emprego, quatro pares de sapatos, camisas, e cuecas. Nem podes tocar as musicas de Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Carlos Galhardo, Júlio Iglesias, Chopin, Rimsky-Korsakov, Rachmaninov, Bach, Handel, Telemann, Vivaldi. Tente assobiar uma música de Luís Gonzaga ou o Hino Nacional. Compra fiado, faz um calo seco nos muitos dos teus pés. Vai votar...
            Cadê as tuas férias? E onde estão os teus filhos? Deixa de ser besta, que o homem é um cavalo de pau, com carroça e tudo. Tem dor de cabeça, úlcera, colite, declaração de imposto de renda, telefone, água da Cagepa que não chega nunca, fundo de garantia por tempo de serviço que roubam todo. És somente uma aranha. Tua casa é uma teia e eu moro debaixo de telhas. Pago aluguel. Saio pelas ruas, arriscando a ser atropelado. Já tive infarto do miocárdio, gripe, sinusite, catapora, sarampo, tifo, dor de barriga, amidalite, dor de ouvido, caganeira.
            Como  é que podes, então, ficar nesse canto, toda soberana, se passas a vida, inviolável? Na tua vida não passou um Collor de Mello, uma Revolução de 64, um AI-5, uma seca, um José Américo de Almeida. Como é que podes me olhar com ira, se nem sabes ler?
            Tu tens o dom de fiar, eu de comprar fiado. Já não é uma coisa feita? Vai dormir aranha, que eu vou amanhecer o dia, ver o sol, a barra quebrando, as nuvens cor-de-rosa, o vento fresco tocando as folhas das palmeiras. Vou cheirar o perfume dos bugaris e dos jasmins. Vou ouvir o primeiro canto dos pássaros, a aleluia da manhã que me desce como uma ternura. O meu relógio marca o meu tempo. E o teu tempo não tem marca a não ser os fios de tua teia.
            Não vou perguntar se és feliz. A felicidade é uma asa e tu não voas. Muitos são os meus caminhos e tu não sais deste canto de parede. Pensando bem, agora que meus olhos adormecem, vamos trocar de lugar? Eu faço a tua teia, tu fazes a minha vida. Se sair errado, a culpa é do destino, que te fez aranha e me enfeitou de homem. É uma questão de cor, ou um caminho de dor. Amém.

Nota – Cutucando por aí, achei, nos blogs da vida, mais um admirador do meu mano Robério.

*Ciranda Cultural

Blog informativo dos alunos do 4º. Ano das disciplinas de Edição e Jornalismo cultural, ministradas pela professora Sávia Cássia.

Reportagem: Márcio Sobrinho, Givanildo santos, Lenildo Ferreira.

PÁGINAS ESQUECIDAS: A CRÔNICA DE ROBÉRIO MARACAJÁ

Entre os maiores nomes da crônica campinense, está escrito em grandes letras o de Robério Maracajá (1929-2000) — jornalista, crítico literário, ensaísta, poeta, folclorista, contista, romancista, e professor; mas, sobretudo, um cronista responsável por retratar um misto daquilo que nos inquieta enquanto seres humanos e aquela parte da realidade que nos é por vezes imperceptível, as coisas miúdas da vida.
Nascido no Cariri paraibano, onde passou a infância, e cujos pássaros e paisagens se tornaram seus temas mais recorrentes, Robério iniciou cedo sua jornada no mundo das letras, tendo ganho aos 19 anos um prêmio nacional pelo conto “A volta do desespero”.
Em quase 30 anos de profissão como jornalista — que na sua definição deveria ser “o tradutor de sua época” e “a voz que respeita, mas não cala”, a existir “até que viva a coragem de ser livre e a liberdade de ter coragem” —, Robério deixou um legado de reportagens, palestras, conferências, um romance não publicado, e um valioso estudo sobre o historiador Cristiano Crispim, a quem sucedeu na Academia Campinense de Letras, dentre outras produções.
Mas, sem dúvida, a maior riqueza de seu espólio são as milhares de crônicas que escreveu. Sua rotina, por um bom tempo, foi, todas as madrugadas, escrever o texto que iria ao jornal no dia seguinte. Em 7 de junho de 2000, curiosamente, publicou uma crônica intitulada “A primeira entrada no céu”, e no dia seguinte, aos 70 anos, faleceu de infarto fulminante enquanto falava ao telefone.
Apesar de se afadigar constantemente no exercício com a palavra, sua frase não se apresenta aos leitores rotineira ou repetitiva, mas é como se tivesse absorvido o frescor e a novidade das madrugadas nas quais Robério datilografava em sua máquina “desconjuntada pelo uso”. Sua crônica era tecida numa linguagem extremamente poética, sentimental, intimista, e ensimesmada — como ele mesmo o era; pouco afeita às polêmicas políticas, mas sem esquivas.
Hoje — aguardando uma edição em livro que lhe faça jus e ressuscite o interesse dos leitores —, boa parte da produção de Robério pode ser encontrada nos arquivos do Jornal da Paraíba, ou no acervo pessoal de sua esposa, a profª. Eneida Agra Maracajá.
É difícil escolher uma crônica para incluir como exemplo de sua escrita, tão múltiplos são os temas que abordou em seu extenso cronicário e tão igual a qualidade de suas produções. O texto que segue foi publicado na edição de 7 de abril de 1993 do Jornal da Paraíba.
segunda-feira, 28 de maio de 2007

**(O autor da crônica é irmão de Grijalva)
maracajag@hotmail.com





COMENTÁRIO DO MARACAJÁ*

DOMINGO, 1 DE JANEIRO DE 2012

Robério Maracajá, com a palavra



Jornal da Paraíba, meu abraço!

PUBLICADO EM 23/10/2011 ÀS 08:00H POR
Robério Maracajá – 17/09/1929 – 08/06/2000

Abro a velha Carteira do Ministério do Trabalho e lá está anotado o meu ingresso no Jornal da Paraíba: 1º de março de 1972. Registro nº038, cargo Redator e um salário de CR$400,00 mensais. O jornal foi fundado em 5 de setembro de 1971. Portanto, eu ingressei no batente, seis meses depois de estar em circulação. E, haja saudade!Rua da Areia e o Bar do Sargento. Um lance de escada, um salão povoado de fauna e flora. Posso me lembrar de todos? A memória, já beirando os setenta, não dá muito arrimo. Mas, nos ouvidos ainda soa a trela das máquinas de escrever. Nos olhos, vagam as imagens dos companheiros, verdes e maduros, alguns já largando a casca. Bichos e flores. Armando Lira, com jeito de seminarista arrependido. Josusmá Viana afobado que nem barbatão na solta. Humberto de Campos dando esturros de onça baleada. Celso Pereira, que teve um “desmaio psicológico”, no Bar do Sargento. Ana Luíza, enfeitada de alegria como um passarinho. Nilda, na doçura de sua tranquilidade. Marcelo Marcos, máquina fotográfica ambulante. Sevy Nunes, na sobriedade caririzeira. William Tejo cutucando os políticos. Orlando Tejo, um busca-pé. Ismael Marinho, fechado que nem corrimboque. Marcos Marinho, um grilo falante. E, quantos mais que me fogem à lembrança? E eu, acuado no meio das feras, como num circo romano.
Depois, a Rua Major Juvino do Ó, eu já longe do batente, mas colaborando com as minhas aventuras crônicas. A fleugma de Mozart Santos. Arimatéa Souza, mais parecendo um capitão corsário. Rossélio Marinho, nos sobressaltos na área econômica. Ana Lúcia, um toque de delicadeza. E os demais, da safra nova, com os quais tenho pouco contato. E o “presidente” Itamar, a quem importuno, na busca dos Painéis, que remeto para as editoras do País. São 27 anos de Jornal da Paraíba. De Humberto Almeida a Ricardo Carlos, foi escrita uma história de jornalismo honesto e sério. A maioridade de uma imprensa que nunca teve medo de falar. Um caminho de resistência ao meio termo. A boca escancarada da opinião. O intéprete de um povo acostumado a falar o que quer, que não baixa o cangote, nem se amofina. Vinte e sete anos que honram a todos nós.
Eu me amancebei com o Jornal da Paraíba. Nunca me importei com os salários, porque as máquinas, o cheiro da tinta, as impressoras, as notícias, as reportagens, eram-me coisas vivas, entrenhando-se na alma como chuva na terra seca. Foi onde me fertilizei. Muitos do meu tempo, estão habitantes da vida. Outros se foram. Seus nomes estão na minha saudade e nas gotas das minhas lágrimas. Deixaram-me lições de vida, de amizade, de carinho. Se me fosse dada a aventura de recriar, eu inventaria um grande jornal, traria todos de volta, para reviver a alegria de acalentar a imagem dos olhos e me perder na loucura de um grande abraço.
Mas não é tão descabido, assim, o meu sonho. Do batente de um jornal, ninguém se vai. Como não se foram Ana Luíza, Alberto Queiroz, Tarcísio Cartaxo, Clóvis de Melo...Como não se foi ninguém. Como um jornal não vai embora. E, na sua maioridade, o Jornal da Paraíba é a soma de todos. Esse aniversário é muito meu. Porque também nasci num mês chamado setembro. Porque somos filhos do mesmos sonho, porque nos vestimos nas mesmas páginas, porque falamos a mesma língua, porque os nossos caminhos se cruzaram, além de nossas vontades, amarrados em nossos destinos.

Fonte: 
http://jornaldaparaiba.com.br/blog/jpdebates/post/12274_jornal-da-paraiba--meu-abraco-

*Marcos Maracajá é primo de Robério, residente em Recife: Poeta, Advogado, Escritor.


terça-feira, 27 de março de 2012

O CONQUISTADOR




João Henriques da Silva *
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

            A cidade inteira sabia da fama de Polidoro, o conquistador. Grandalhão, rico e metido a valente. E ainda tinha o topete de andar comentando suas mais recentes conquistas. Ao certo não se sabia se eram verdadeiras ou se eram gabolice. O fato é que Polidoro era uma espécie de terror, e os pais de família e os maridos viviam de olho nele. Mesmo assim não se dava por achado. Até o padre da freguesia andava assustado e prevenido. Tinha em sua companhia, a irmã moça, um pedação de mulher que poderia cair nas armadilhas de Polidoro. Prometer-lhe casamento, enganar a moça e depois deixá-la ao léu.
            - Olha Mariana, não queiras conversas com o Polidoro. É ricão, mas é um péssimo elemento. Segundo dizem, tem desvirtuado várias moças de família e fica por isto mesmo. Tenha medo do bicho. Não chegue perto dele. Seria horrível o teu nome envolvido nas cretinices daquele canalha. Mesmo que não seja verdade o que ele diz, não será fácil desfazer uma calúnia e o safadório é useiro e vezeiro nisto. Nem olhar para ele.
 Sagaz como era não abusava de menores.
 E só havia um meio que era fazê-lo desaparecer misteriosamente. Mas ninguém se atrevia a isto. Falavam a boca pequena e ia ficando nisto. Bastava a cara enferrujada de Polidoro, para meter medo. Junte-se a isto, o físico exagerado e a bazófia de brutamontes.
Na realidade, muita coisa era apenas conversa fiada para se engrandecer. Quando passava por uma rua já se temia que estivesse tramando um assalto à honra alheia.
Pedro Jacinto reclamava sempre que havia falta de homem na cidade. Tamanho não era documento.
- Tenho duas filhas, mas Deus queira que não surjam boatos sobre elas.
Polidoro soube da conversa e comentou:
- Nunca tive nada com aquelas duas gaiatas e aquele porroia anda a falar besteiras. Aquilo eu achato com duas tapas. Pois agora ele vai ver. Vou passar o garfo nas duas e ele não me vai achar ruim. Era só mesmo o que me faltava. Já sabe quem é Polidoro dos Santos!
Quem ouviu, correu a contar a Pedro jacinto, enfeitado ainda mais o fraseado.
- Deixa vir. Minhas meninas são pobres e sérias. Criadas como gente. Caso se meta para o lado de cá, irei tirar-lhe o sarro.
Polidoro era desabusado e botou-se para as meninas. Esperava-as quando iam para o trabalho, soltava indiretas jocosas para ir amaciando. As meninas contavam em casa e já estavam com receio de sair. Não queriam ver o pai envolvido em situações desagradáveis. Além de tudo era visível que levaria desvantagem.
- Como é o cabrão ainda continua?
- Ora, não nos deixa. Já hoje me chamou de meu bem e, de longe, propôs casamento à Mariana e acrescentou: - A qualquer uma das duas -. A gente procurando fugir e ele cercando. Já andamos com medo de que não nos queira forçar.
- Tem nada não. Mas não respondam nada nem parem. Um dia ele vai cansar. Sei que vocês não vão se deixar enganar.
No entanto, Pedro jacinto andava com uma pulga atrás da orelha. O bicho era atrevido, rico e viciado. Pelo que se ouvia dizer já deveria ter morrido há muito tempo.
- Olha, pai, ele hoje nos convidou para das um passeio. Daria bons presentes e se casaria com uma.
Pedro jacinto passou a noite remoendo desgraças. Não tinha mais para onde fugir. O sem vergonha andava mesmo atrás de suas filhas e não queria o nome delas na rua. Além de pobres, faladas, Deus que o livrasse.
Polidoro era homem de noitadas. Andava como um morcego atrás de chupar a honra de alguém.
Pedro Jacinto não queria complicações. Poderia fazer as coisas veladamente sem que em tempo algum se viesse, a saber. O miserável era cheio de inimigos e se saísse das ruas seria um alívio. Todos iriam gostar e ninguém havia de aparecer para lamentar.
Pedro Jacinto queria fazer a coisa bem feita. Carregou na espingarda lazarina até a boca, incluindo cabeças de pregos velhos enferrujados, chumbo grosso e esferas de rolamentos. Tinha até receio de que iria arrebentar os fechos da espingarda. O importante era esbagaçar o peito esquerdo do miserável. Também não queria perder a carga que preparara com tanto cuidado. Ficaria numa esquina e apertaria o gatilho à queima roupa, fazer um rombo maior do que a boca da noite.
 Tomou posição e esperou emocionado. Iria fazer aquilo que todos esperavam, mas não tinham coragem de executar. Viu quando Polidoro vinha em direção à casa do Creudo, onde andava papando a filha. Havia de ser um disparo certeiro para não dar nem tempo de se mijar. Polidoro vinha de peito aberto, já antegozando a aventura. De espingarda engatilhada, Pedro Jacinto esperava a aproximação e no momento exato despejou-lhe a carga de chumbo. Polidoro caiu trancado e não fez mais do que estrebuchar um pouco e apagar-se para o resto da vida. Pedro Jacinto saiu calmamente na certeza de que suas filhas já poderiam transitar sem receio de nada.
Quando o dia amanheceu já havia gente na delegacia de polícia.
- Seu delegado, o seu Polidoro está lá num pé de muro de olho vidrado.
- O que, seu Polidoro?
- Sim senhor. Tive medo danado quando dobrei a esquina.
- E de que foi?
- Sei não, corri para cá, a fim de dar parte. Só sei que está duro.
O delegado apressou os passos para ver o “causo”. Polidoro, o brutamonte estava espichado no chão com os dentes de fora, os olhos duros e a boca aberta como uma latrina sem tampa.
- Era o que ele procurava. Findou achando. Vão avisar aos parentes.
A notícia encheu a cidade. Mataram o seu Polidoro, com um tiro no peito esquerdo. Um rombo danado. Quem foi, quem não foi, procuravam saber. O delegado não tinha dúvida. Foi alguém que ele abusou da filha ou da mulher. Quem foi mesmo jamais se saberá. Nem vale a pena, procurar. Também não se perdeu nada. Aliás, vai se perder uma cova no cemitério. Um traste daquele deveria ser exposto para os urubus, isto é, se tiver moela para triturar semelhante peste.
Á boca pequena surgiram os comentários. Só pode ter sido fulano ou sicrano. O nome de Pedro Jacinto não aparecia, mesmo porque não ouvira falar que houvesse bulido com as filhas e, além do mais, o Jacinto era um pobre de Cristo.
- É isto mesmo. Quem semeia vento colhe tempestade. Deixa pra lá. E bendita seja a mão que puxou o gatilho. Tirão bem empregado!
Para o enterro foram quatro gatos pingados. O delegado também não foi, pois bendizia a mão que dera a carga.
- Como é, seu delegado, descobriu alguma coisa?
- Descobri, sim. Foi um tiro de espingarda bem carregada e o disparo foi à queima roupa, para não falhar. Só sei disto e já é muito. É pena que tenham demorado tanto. Fez muita miséria e já me preocupava a moleza dessa gente. Nem me davam parte e nem agiam. Tinham medo. De qualquer forma, tardou, mas chegou. Um alívio...
- Pelo visto, minha gente, foi a polícia quem derrubou o Polidoro. O delegado nem dá bolas. É como se não houvesse um crime.
Pedro Jacinto não contou nada em casa e nem nunca deu qualquer demonstração de haver sido ele. Até ao contrário, lamentava o acontecimento. Fizeram uma covardia.
- Como é que se atira de traição. Não se lava honra assim. Ah! Se fosse comigo, iria enfrentá-lo no meio da rua para todo mundo assistir. Isto sim seria um gesto de coragem e de vingança.
Pedro Jacinto lavou bem e lubrificou a espingarda velha que havia tirado de cima do guarda-roupa, ainda meio enferrujada. Depois da ocorrência, com Polidoro já fedendo de baixo de sete palmos de terra suja do cemitério, à cidade voltou à tranqüilidade.
Pedro Jacinto adora andar pela cidade para ouvir os comentários. Fazia perguntas inocentes e ficava admirado de quem teve a coragem de fazer a limpeza.
- É, estava faltando um homem nesta terra. Eu mesmo para falar a verdade, preferia mudar-me a ter que enfrentar a onça.
Foi até bom que Deus, todo abençoado, não me tivesse dado coragem. Tirar uma vida de um próximo, só porque gostava de mulheres, Santo Deus! Todo ser vivo merece respeito. Do mosquito ao elefante. Graças a Virgem Santa e minhas filhas, nunca tive coragem de matar nem uma lagartixa.
 Estou zelando esta espingarda velha por que foi de meu pai. Quero bem a ela. Na mão dele nunca negou fogo. Muito certeira. Era apontar, caiu. Coitado de quem estava a sua frente. Eu, felizmente, nem aprendi a fazer pontaria, graças à Virgem Mãe.
Rezem pela alma de seu Polidoro. Coitado!

Em 27.7.86






segunda-feira, 26 de março de 2012

O RAIZEIRO





João Henriques da Silva
(Em Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Nossa flora é muito rica em produtos medicinais. Há remédio para todos os males e é mais fácil faltar feijão ou farinha numa feira nordestina do que um especialista no comércio de meizinhas vegetais e de origem animal.
            Raízes, folhas, sementes, couro e dente de jacaré, guizo de cascavel e o diabo a quatro. Ninguém morrerá por falta de remédio e estimulantes populares.
            Uma banca na feira expõe a farmácia matuta. E não precisa ir ao consultório médico. Januário entende daquela bacafuzada toda. É só dizer a doença ou o problema. E existem remédios polivalentes. Outros específicos e receitados com a competente dieta.
            Para alguns é até proibido relacionamento com mulher. Quem não observar fielmente a dieta, não espera bom resultado. Há medicação também para tirar mandinga, curar doidice e gerar filhos em mulher estéril.
            Seu Padilha era curiosamente um freqüentador das bancas dos raizeiros. Ficava-se por ali, só para observar o receituário. E depois saia comentando.
            Certa feita chegou um sujeito meio desconfiado, olhou se havia gente por perto e contou sua história. Casado há três anos e a mulher não lhe dava um filhote. E a coitada se lamentava, - dizia o marido: E o pior é que a mulher botava culpa nele.
            - “Se eu tivesse me casado com outro, na certa teria um filho todo ano. Casei-me com um molenga”.
            - Não há dificuldade, meu amigo. Dou remédio para os dois. Não falha. É tiro e queda. E juntou num papel pitadas de vários ingredientes. – Pisa bem pisado, ponha ao fogo numa panelinha nova e ferva bem. Mas, veja bem, a panela tem que ser nova em folha. Depois coar e tomar três dias seguidos na hora de deitar. Tomem os dois, olhando um para o outro. Têm que beber ao mesmo tempo e nessa noite não toquem mais em comida nem água. Nessas noites, um não encosta no outro. Só na quarta noite se desejarem. Vão sentir quando o fortificante fizer efeito. Não é para forçar. Um espera pelo outro. Veja bem. Só quando os dois estiverem afiados... E fez um arzinho de riso.
            Pagou e saiu exultante.
            - Se não der certo desta vez, volte aqui que tenho coisa mais forte, mas, é remédio quase para defunto!
            O tempo foi se indo e mestre Januário nem mais se lembrava do matuto e até preferia não vê-lo. Já andava azucrinado de reclamações. E o seu interesse era vender, embolsar seu dinheirinho e o resto que fosse pentear macaco. Bem que podiam ver que aquelas porcarias não valiam nada. Mas o mundo estava cheio de Zé bedeguas. Em todo caso, às vezes as drogas faziam efeito e era isso o que lhe valia. O que tinha que fazer era arranjar desculpas. Certamente não reparou bem ou não cumpriu a dieta. E assim ia vivendo da ignorância da matutada. Algumas vezes até acontecia que gente importante, desiludida da medicina, recorria a ele. Então tomava mais cuidado. Aviava a receita com mais cautela.
            Quando menos esperava, o matuto botou a cara. Relembrou-lhe a consulta e não estava com cara de bom amigo.
            - Mas o que foi que aconteceu, meu amigo? Fiz o que pude. Se não deu resultado, foi uma exceção. Aquele xarope nunca falhou.
            - Nada disso, o senhor errou na dose.
            Januário tremia nas carnes. Dessa vez estava empresado mesmo.
            - É o que eu estou dizendo.
            - Sua mulher morreu? Afinal de contas não tenho culpa. É a primeira vez que isso acontece. Mais juro que não foi do remédio. O senhor se acalme.
            - Acalmar como, seu Januário. O senhor passou um remédio forte demais, vim aqui para dizer-lhe isso, afim de que não erre mais. Pensa que é brincadeira? A mulher...
            Januário encolheu-se todo. Sentiu-se perdido, já sentia um frio na barriga da ponta da faca.
            - É sim. É o que eu estou lhe dizendo!
            Januário se encostou a seu Padilha, como querendo proteger-se.
            - Isso não se faz seu Januário. Chegue mais perto para ouvir o resto.
            - Estou ouvindo, pode dizer homem!
            - O senhor sabe o que fez com a sua xaropada? Não, não sabe. Vai saber daqui a pouco. Com matuto não se brinca, seu Januário.
            - Acontece, homem de Deus.
            - Acontece, não! O senhor foi o grande culpado.
            Seu Padilha resolveu intervir. Seu Januário é meu velho conhecido. Um homem direito. De boa fé. Acalme-se e diga mesmo o que aconteceu.
            - Passou um remédio para ter um filho que minha mulher desejava e se culpava de mim. Contei tudo direitinho a seu Januário. O que fez? Passou remédio para os dois e foi um desastre completo. Em vez de nascer um menino, nasceram dois. Dois, dois meninos. Era somente um, um somente. E agora está lá o problema. O leite da mulher só dá para um menino e não tenho dinheiro pra comprar mais. Isso não se faz. Imagina se tem me dado o outro que ele disse que levanta defunto!... Teria nascido uma ninhada. Agora quero remédio para cortar carreira... E se falhar voltarei aqui para ajustar as contas.
            - Ah! Para isso, tenho especialidade. - Embrulhou cascas e sementes para torrar e beber uma garrafada. - Infalível. É só para o senhor. Beba de uma vez. Não precisa pagar.
            - Quero pagar para poder vir cobrar depois, se não fizer efeito.
            Januário sabia o que ia acontecer. Mudou de feira. Foi para outra região.
            - Dá notícia de seu Januário?
            - Não. Ando procurando todas as feiras. Nunca mais o vi. Desapareceu.
            - Talvez tenha até morrido. Aconteceu alguma coisa?
            - Pior ainda. Tomei a droga que ele me deu para não nascer mais menino e veio à desgraça. Brochei de uma vez. E a mulher me aperreando noite e dia. Além disso, já ameaçou em me largar, levando os dois meninos. Queria que ele me desse outro remédio para levantar as forças. E o safado sumiu!
            - Conforme-se meu velho. Quando o senhor saiu, ele me disse que o xarope que lhe receitara ia derrubá-lo para o resto da vida. Não havia mais cura... O jeito que tens, agora é esquecer de uma vez.
            - E a minha mulher, que anda toda assanhada?
            - Deixe ela se virar.
            - Virar como?
            - Ela sabe... Não precisa o senhor se preocupar. Quando a coisa adormece assim, pode perder a última esperança, meu velho.
            - E agora, como é que eu vou ficar?
            - Calmo e tranqüilo. Não tenha mais dúvida. Um chá de seu Januário é tiro e queda. E quando se cai assim de mau jeito, ninguém levanta mais. E prepara-se para passar abaixado nas portas.

            

segunda-feira, 19 de março de 2012

PANTALEÃO




João Henriques da Silva *
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

                Pantaleão não era brincadeira. Honesto trabalhador, inteligente e disposto. Tinha, entretanto, uma parte fraca: medo de coisas do outro mundo. Não ia a enterros nem passava perto de portão de cemitério. Falassem em tudo, menos em defunto e assombração. Essas coisas arrepiavam-lhe os cabelos e o deixavam inquieto. Fazia força para se controlar, mas o negócio estava enraizado lá dentro. Quando falavam em doente já ficava pensando no defunto. Dormia com a luz acesa e só andava à noite acompanhado. Quando lhe diziam que era só impressão, ficava calado, considerando que era inútil querer tapeá-lo. Talvez por causa dessa obsessão, tinha sonhos horríveis, acordava a mulher e perdia o sono. Algumas vezes chamava as crianças para juntinho de si. Só, é que não ficava.
Certa feita morreu um anjinho e teve que ir ao enterro. Apavorado, mas foi. Pisou à porta do cemitério como se estivesse pisando em cima de destroços humanos. Era dali que saiam as almas penadas, que ia à noite, com fala fanhosa, pedir rezas ou visitar os amigos de quem não queriam se separar. Chovia fino e, sem parar, encharcando a terra já molhada. Chegou a hora crucial do enterro. Antes de descer o caixãozinho à última morada, Pantaleão, tomou-se de coragem e resolveu olhar a fundura da cova, onde iria ficar aquela criaturinha sem crimes, sem pecados, a pura inocência.
Aproximou-se bem daquele buracão de sete palmos de fundura. E aconteceu o inesperado. A barreira da cova quebrou-se e Pantaleão caiu dentro. Para quem já era supersticioso até a raiz do cabelo, aquilo era a última coisa que poderia acontecer a um cristão. Rapidamente encolheu-se e sem se apoiar em nada, de um salto pulou fora da cova. Não houve jeito, mesmo naquele transe, senão rir todo mundo. Pantaleão não sabia para quem olhar nem o que fazer. Estava um homem liquidado.
Chamou um parente e foi saindo sem pisar no chão. Quando readquiriu a fala e já distante do cemitério, confessou: - Hoje amanheci azarado. Desta não vou escapar. Nunca aconteceu isso com pessoa nenhuma. Isso é um aviso. A cova me chamando. E agora?
- Foi uma simples coincidência, Pantaleão. Aconteceria com qualquer um que se abeirasse da cova como fizestes.
- Aí é que está. Uma atração do destino. Emburaco brevemente. Onde já se viu uma coisa dessas...
- Não confunda as coisas, Pantaleão! Precisa perder esse medo do além. Vou lhe dizer sinceramente. Não acredito em almas, nem coisas do outro mundo. Isso tudo é conversa fiada. De quem morre só se salva a energia que se desprendem do corpo. Depois da morte é o nada e o esquecimento total. Foram os padrecas que inventaram limbo para os pagãos, purgatório para quem morre em pecado venial e inferno no duro, para quem se acaba com pecado mortal. Pura bobagem. É simplesmente uma forma cômoda de enganar os bestas e viver a tripa forra. Tira essas idéias da cabeça. Cuida na tua vida, dorme tranquilo e perde o medo do que não existe. Ora bolas. Já viu alguma alma, alguma assombração, seu bobo. Mete isto na cabeça.
- Rapaz! Cair dentro de uma cova não é brincadeira... A história antiga e moderna não registra um fato igual. Fui eu o único, o único entende?
- Cova de anjo, Pantaleão. É até uma graça de Deus. É um felizardo.
- Bela felicidade. Ia me enterrando vivo, se não fosse tão ligeiro, tenham jogado terra em cima.
- Quem anda com medo do que não viu nem existe, deve andar biruta. Procura um bom médico. Deixa dessas impressões idiotas.
Fim

domingo, 18 de março de 2012

O CARREIRO



João Henriques da silva*
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Tão logo Biri passou a se entender de gente, não largava o pai no seu oficio de carreiro. Era sua paixão, sentar-se na mesa do carro e ganhar as caatingas, no transporte de lenha para o forno de cal.
            Antes do amanhecer já estava de ouvido a escutar, sonhando os movimentos do pai nos preparativos para juntar a boiada. E no primeiro sinal, saltava da rede, calçava as apragatas de correia, lavava o rosto na bacia de flandre, apanhava o chapeuzinho de couro e ficava rondando.
            Quando os bois chegavam do pasto, já estava no terreiro. Pedia a benção ao pai, avisava que o café já havia fervido e a comida estava na mesa para quebrar o jejum.
            Seu Antonio Tetéu atrelava a boiada e entrava pensando no que ia fazer. Colocava, calmamente, o cuscuz fumegante no prato fundo com leite fumaçando e ficava como se estivesse esperando alguma coisa.
            - Come pai, senão esfria.
            Biri não começava antes do pai e ficava, às vezes, impaciente, sobretudo quando havia um assado de carne de bode ou um pedaço de jabá para forrar bem o estômago.
            - Olha, Biri, quem carreia não deve ter pressa. Tem que andar no passo dos bois.
Afinal, comiam. Tetéu acendia o cigarro de fumo de rolo, tomava as primeiras tragadas, pegava o facão, pendurava na cintura e gritava a boiada.
Dona Conceição ficava escutando o carro cantar até sumir na caatinga. Pela cantoria do carro sabia quando iam e quando voltavam. Botava o feijão macáçar no fogo e cuidava do arranjo da casa.
Depois disso, ia fazer renda na almofada de bilros. Sempre recebia encomendas que lhe davam algum dinheiro. Pouco, mas bem que servia.
As rodas de madeira, com os aros de ferro, chiavam no chão duro no pedregulho das trilhas. Enquanto enchia o carro, soltava as duas juntas de boi para irem pastando ali por perto. Biri se encarregava de vigiá-los.
- Trás as juntas Biri.
 Os bois já sabiam onde iam ficar. Canário e Azulão, os bois de coice, entravam primeiro. Eram mais treinados e possantes. Pintado e Careta, no cambão.
Os bois davam o primeiro impulso, erguendo o lombo e o carro, pesado, começava a rodar e a cantar pela caatinga afora.
Boi de carro de Tetéu nem apanhava, nem levava ferrão. Não havia tanta pressa assim.
A vara de ferrão não tinha agulhão. Bastava uma cutucada para alertar a boiada nos lugares mais difíceis. Todos os dias era aquele mesmo rojão, não faltava lenha para o cozimento das pedras de cal.
 A caatinga é que ia se esvaziando. Os machadeiros iam derrubando tudo. Exceto as Baraúnas, Paus-D’arco e Aroeiras que pudessem dar obra.
Mas era necessário fabricar cal para sobreviver naquele sertãozão de pouca chuva. Os campos iam ficando pelados, uma árvore aqui outra além. Mas não havia outro jeito. Seu José Deodato tinha pena daquilo, mas não tinha outra saída.
Como poderia viver toda aquela gente sem a quebra de pedras, do corte da lenha, dos transportes, os forneiros e os demais.
Quando olhava para os seus campos devastados, entristecia, mas desgraçadamente tinham que viver todos daquela consumição. E pensava como iria ser quando não houvesse mais paus para derrubar e lenha para queimar pedra. Eram feios demais aqueles campos vazios, o chão descoberto, com o lombo queimado.
E os vizinhos sempre aconselhando:
- Deixa José Deodato, essa derrubada. Para de fazer cal. Estais acabando com a propriedade. Já não tem nem folha para bode comer.
- Como posso minha gente. E as famílias que vivem disso. Quem vai lhe dar o que comer se não chove para criar lavouras. Eu sei, eu sei, mas o pior é parar.
A boiada do transporte de pedras terminava o dia toda manchada de sangue da ponta do ferrão. Descarnada, judiada, estropiada.
Seu José Deodato chamou o carreiro Damião:
- Por que esses bois estão assim?
- O senhor não quer pedra para queimar? Tenho que correr e o jeito é a ponta do ferrão! Não se pode alisar couro de boi. Nem fui eu quem inventou ferrão. Quem inventou é porque sabia o que fazia.
- Pois é. Entrega o carro a Tetéu. Ele é que vai manobrar com os dois. Ele bote quem achar melhor. Não admito uma barbaridade dessas. Pensas, cabra bruto, que os animais não sentem dor como a gente? Isto é desumano. Se quiseres continuar trabalhando vai para a boca da fornalha, Lá verás o que é bom.
Tetéu tomou conta do carro. Mandou dar um banho nos bois e tirar as pintas de sangue. Tomou a vara de ferrão e arrancou-lhe o agulhão.
Chamou o Capoeira e entregou o carro:
- Olha, em boi nem se bate, nem se fura. E quero vê-los iguais aos meus.
O cabra Damião ficou despeitado. O calor da fornalha queimava-lhe as pestanas. Tinha certeza que aquilo havia sido fuxicada do Tetéu. Jurava vingar-se. Preparou-se para isso.
Biri já era um rapazote fornido e ligeiro como um gato.
Damião estava espoletado. Dia a dia aumentava-lhe a sede de vingança. Certa feita, na hora da folga seguiu Tetéu. Queria pegar o bicho onde não houvesse alguém para acudi-lo. Apressou os passos e, no meio da caatinga alcançou Tetéu:
- Quero falar com você.
- Então vamos andando.
- Andando não, seu safado. Foi você que fez a fuxicada para o homem me tomar o carro. Sei que foi e não adianta negar.
E virou o cacete em Tetéu.
Tetéu não queria fazer uso do facão. Procurava se safar e encontrar um meio de defesa.
Biri viu aquilo espantado.
Tetéu poderia cortá-lo a facão e já estava destinado a isso, quando de repente viu o danado cair e Biri enfiar-lhe novamente a faca. Ia dar-lhe outra quando Tetéu gritou:
- Basta Biri.
- Pai, vamos acabar com esse peste.
 O cabra gemia e chorava. Pelo amor de Deus não me matem
Biri mostrou-lhe a ponta da faca e riscou-lhe a barriga.
- Vamos levar para a fazenda, Biri.
- Não pai, deixa esta desgraça apodrecer aí. Ninguém vem procurá-lo e os urubus vão fazer uma festa com ele... Nunca mais vai bater em pai de ninguém.
- Não façam isso. Levem-me. Juro como estou arrependido. E não falou mais nada. O diabo já o havia levado.
No dia seguinte os urubus começaram a baixar.
- Morreu bicho. Vão ver o que é.
- Patrão, é o safado do Damião, sem a cara. Deve ter estuporado.

·         O autor é pai de Grijalva Maracajá Henriques






sexta-feira, 16 de março de 2012

O MEU PAÍS




Orlando Tejo*



Um país que criança elimina,
Que não ouve o clamor dos esquecidos,
Onde nunca os humildes são ouvidos
E uma elite sem Deus é quem domina;
Que permite um estrupo em cada esquina
E a certeza da dúvida infeliz;
Onde quem tem razão baixa a cerviz
E massacram-se o nego e a mulher,
Pode ser o país de quem quiser,
Mas não é, com certeza, o meu País!

Um país onde as leis são descartáveis
Por ausência de códigos corretos,
Com quarenta milhões de analfabetos
E maior multidão de miseráveis;
Um país onde os homens confiáveis
Não têm vez, não têm voz nem diretriz,
Mas corruptos têm vez e voz e bis
E o respaldo de estímulo incomum,
Pode ser o país de qualquer um,
Mas não é, com certeza, o meu País!

Um país que perdeu a identidade,
Sepultou o idioma português
E aprendeu a falar pornofonês
Aderindo à global vulgaridade;
Um país que não tem capacidade
De saber o que pensa e o que diz,
Que não pode esconder a cicatriz
De seu Povo de bem que vive mal,
Pode ser o país do carnaval,
Mas não é, com certeza, o meu País!

Um país que seus índios discrimina
E a Ciência e as Artes não respeita,
Um país que inda morre de maleita
Por atraso geral da medicina;
Um país onde escola não ensina
E hospital não dispõe de Raio-X,
Onde a gente dos morros é feliz
Se tem água de chuva e luz do sol,
Pode ser o país do futebol,
Mas não é, com certeza, o meu País!

 Um país que é doente e não se cura,
Triunfal candidato ao quinto mundo,
Que do poço fatal chegou ao fundo
Sem saber emergir na noite escura;
Um país que engoliu a compostura
Atendendo a políticos sutis
Que dividem o Brasil e mil brasis
Pra melhor assaltar de ponta a ponta,
Pode ser o país do faz-de-conta,
Mas não é, com certeza, o meu país!

Um país que dizima sua flora
Ensejando o avanço do deserto,
Pois não salva o riacho descoberto
Que no leito precário se estertorar;
Um país que cantou e hoje chora
Pelo bico do último concriz,
Que florestas destrói pela raiz
E a grileiros de fora entrega o chão,
Pode ser que ainda seja uma nação,
Mas não é, com certeza, o meu país!

*Tejo, Orlando.
As noites do Alvorada: Via Crucis do Caboclo Misterioso/Orlando Tejo.
Recife: Cia Pacifica, 1997.







domingo, 11 de março de 2012

O homem que tapeou Antônio Silvino





Era uma vez... Dois primos, Inácio e Severino, brejeiros dos bons, que viajavam semanas a fio, de vinte a trinta quilômetros por dias com os burros carregados, só parando para alimentação frugal e à noite para o cochilo mal acomodado, sempre debaixo de árvores que dessem uma boa sombra, e os protegessem do sereno da noite, como os Juazeiros, Mulungus, Trapiazeiros, Umbuzeiros e Craibeiras pelo Agreste Nordestino: Brejo, Curimataú, Seridó, Cariri e Sertão com uma tropa de burros: dois de sela e doze animais de carga, com seus arreios aonde dependurados iam à malotagem, bruacas ou os sacos com as mercadorias, sempre cobertas com lonas, fora a burra madrinha, velha e sabida que encabeçava e escolhia os caminhos melhores, sempre enfeitada com fitas e um sininho característico ou mesmo um chocalho com um som bem peculiar, onde os outros animais a seguiam quer de dia ou à noite; desses burros, dois eram animais com a troçada do dia a dia: comida, redes, água, capote feito de algodão grosso, onde matava o frio e os protegias da chuvas (poncho),  panelas, fumo de corda, cachaça, trempe de ferro para cozinhar, lona, sabão e o diabo a sete. A comida se resumia, quase que carne de charque, ou carne seca (chamada de sol) farinha de mandioca, queijo de coalho, toucinho, sal, café, açúcar, arroz, temperos, feijão dos dois tipos: o mulatinho e o de corda, xerém de milho e um tipo mais fino para fazer cuscuz.
Saiam sempre de Riacho Fundo, fazenda localizada entre Esperança e Areial na Paraíba, Próxima da fazenda Arara do meu avô Manoel Henriques (Virgolino) da silva.
Viviam nas propriedades de seus familiares, onde há muito se produzia feijão de arranca (mulatinho), fumo, que era transformado em “fumo de rolo”, pronto para ser usado, erva doce, batatinha inglesa, agave, café e mais uma finidade de alimentos para sua sobrevivência e para a comercialização.
Muitos tropeiros também partiam do Brejo Paraibano, levando estas mercadorias como também o açúcar mascavo, a cachaça e a rapadura, produzida nos engenhos do Brejo.
 No entanto, esses dois meus parentes, há muito tempo só negociavam com feijão, café e fumo, lá pras bandas de Parelhas, Ouro Branco, Macaíba e adjacências no Rio Grande do Norte. Numa dessas viagens, levaram apenas feijão e fumo de corda, não conseguiram vender o feijão, pois naquele ano o inverno fora bom e quase todo mundo tinha de sobra para comer e vender. Venderam o fumo ligeiro e Severino se decidiu tentar vender os sacos de feijão mulatinho na cidade de Natal-RN.
Disse para o Inácio – Vá levar os burros descarregados pra casa, avise a família meu destino e venha se encontrar comigo por lá.
Assim o fez. Um seguiu com seis burros carregados e o outro desceu em direção a Esperança para fazer o que haviam combinado.
Inácio logo que pode, empreendeu viagem, num burro bom, meeiro que o cabra chegava a cochilar em cima da sela. Num dia e meio espirrou na capital Rio-grandense, foi direto para o local marcado. Ficou meio contrariado por não encontrá-lo, danou-se a procurar pelos arrabaldes: locais onde sempre se reuniam os tropeiros, depois de desocupados, como ainda se ver hoje nos dias de feiras nas cidades do interior, (sempre um campo de futebol, em terreno abandonado). Bares, bodegas, lupanares, casas de jogos, pensões baratas, currais onde sempre os animais esperavam, pacientemente, pelos donos, a um preço módico, com direito apenas a água e a garantia de que de lá ninguém os roubariam.
Passou-se um dia e nada do primo. Tirou onda de detetive. Começou a fazer perguntas e nada de notícias, já aperreado, passado quase uma semana, mandou avisar pra família do acontecido e que iria continuar nas buscas. Era um mistério medonho. O homem desaparecera sem deixar rastros. Como o primo tinha vontade de conhecer o norte, ele logo pensou que esse seria o rumo que tomara, para vender o danado do feijão, achando que por ali não havia encontrado negócio, seguiu viagem, e na primeira cidade, teve finalmente notícias de um tropeiro com seus burros. Era só esta notícia que tivera, podia ser mentira mais também verdade, resolveu tirar suas dúvidas, pois já faziam mais de duas semanas da separação dos dois. Seguiu em frente e nada de alcançá-lo.
Notícia aqui e notícia acolá, depois de três meses chegou à cidade de Sena Madureira no Acre, local onde estava havendo migração de nordestinos para trabalhar com a extração da borracha, ficou por lá, sempre procurando o primo e trabalhando juntamente com aquela multidão de desgarrados da sorte. Lutou durante uns três a quatro anos até que resolveu voltar sem o parente, - o mato havia aberto e fechado e engolido o homem – e, como já havia amealhado um bom dinheiro. Fez finca pé de lá e em pouco tempo chegava ao seu velho Brejo, com o coração partido com o sumiço do amigo. Não sabia como se apresentar e narrar aos familiares do desaparecido. Havia de fato enviado cartas, mas falar de cara a cara era outra coisa, olhar nos olhos dos pais matutos e dizer que seu filho não existia era outra coisa mais dura de enfrentar.
Trazia consigo bastante dinheiro e muitas armas, frutos do seu trabalho como seringueiro.
A fama de “rico” logo chegou aos ouvidos de muita gente, inclusive de grupos de cangaceiros, que naquela época perambulavam entre o Brejo e o Cariri Paraibano como: Antonio Silvino, João de Banda, Nêgo Zé Luiz de Queimadas, João Pichaco e tantos outros desocupados.
Um dia lhe contaram que Antônio Silvino e João de Banda vinham tomar o dinheiro e as armas que possuía. Mudou-se da propriedade onde vivia e foi pra bandas de Pocinhos numa fazenda chamada Amaro. Enterrou as referidas armas e escondeu o dinheiro suado que havia conseguindo na luta do ouro branco e contra a malária (impaludismo), no Norte do País, na cidade de Sena Madureira no Acre. Dormia de dia e vigiava de noite, uma bela noite chegou Silvino com sua tropa, cutucaram tudo, reviraram todos os caixotes da casa fizeram ameaças a uns moradores velhos, mataram de tiros várias galinhas e nada de dinheiro e armas.
O danado do bicho também era sabido e jurou que Antônio Silvino não tomaria seus anos de trabalho.
Mudou-se para outra propriedade de nome Algodão perto de Soledade PB; a velha raposa logo descobriu o seu paradeiro e foi bater lá, mas o cabra dizia que “seguro morreu de velho e prevenido ainda estava vivo”, procurou ainda mais se esconder e despistar os cabras que viviam envenenados por dinheiro e armas.
Cada vez mais os cangaceiros ficavam com raiva, por não achar o que não era dele e desta vez, Antonio Silvino, fez o que não era seu costume. Inácio havia ido a fazenda Arara providenciar um enxoval de um sobrinho que havia nascido deixando um menino tomando conta da casa.        
Antonio Silvino emboscou-se com sua tropa atrás de umas pedras, esperando uma oportunidade; nisso viu o menino botar a cabeça fora de casa e aí pegou o molecote, vendo mais uma vez que havia dado o bote perdido, com raiva, deu uns riscos de punhal nos couros do pequeno vigia para que servissem de recado, matando dessa vez umas vacas que estavam no curral atrás da casa.
Inácio fugiu novamente, desta vez foi se embrenhar no lugar chamado Lajedo Vermelho, onde moravam outros parentes, perto da cidade de Soledade. Dizendo sempre que o que era dele ninguém botava a mão. Dessa vez quase que os cabras o pegavam, escapou por um triz. Aprendeu a lição e parou de se gabar e contar lorotas sobre quem era e o que tinha.
Nesse ínterim havia conhecido uma moça de nome Mônica do Município de Santa Luzia, formosa e rica, namorou, noivaram e casaram. Nunca mais Antônio Silvino teve notícias dele. Comprou duas fazendas: Canoa e Poço Salgado, juntamente com seu cunhado (Anísio) e com o dinheiro que tinha guardado montaram uma desencaroçadeira (bolandeira) e prensa de algodão, comprava e vendia gado, negociava com peles de animais num pequeno curtume que tinha na fazenda, possuía caminhões e um automóvel tornando-se um dos mais importantes chefes político e poderoso do lugar. (Ribinha). Antônio Silvino levou a breca, mas não pegou o seu dinheiro nem suas armas.
Muito tempo depois, voltava da feira, montado numa burra branca e pequena, mas que voavam pelas estradas pedregosas da região, enquanto seus filhos e meu tio vinham no caminhão com as mercadorias negociadas na feira, quando - já velho – subiu os degraus da casa e sua esposa abriu a porta contente e satisfeita, se surpreendeu com um cabra, que já o vinha seguindo, o atacando pelas costas, dando-lhe uma gravata com um punhal na mão, era um monstro de forte, dominando-o totalmente, a esposa tentou socorrê-lo, mas o satanás plantou-lhe um pontapé que a deixou desmaiada, nisso entra meu tio com seus dois primos e vendo aquela cena horrível, pegou uma trave de miolo de Aroeira que estava atrás da porta, danou na nuca do assaltante derrubando-o, o bicho ainda ficou ciscando no chão e imediatamente os outros tiraram suas facas e fizeram o resto do serviço. Mas, como era dia claro, engancharam o negrão pela gola da camisa no armador e esperaram que anoitecesse, para no silêncio e no escuro da madrugada, sem que ninguém visse, pudessem carregá-lo numa rede e jogá-lo num serrote que havia distante dali uma meia légua, num lugar quase inacessível.
Conto essa história dos meus parentes, hoje, porque já se passaram mais de cem anos e os personagens já não existem mais e nunca souberam quem era o bandido que tentou roubar o velho e cansado Brejeiro Inácio.







             Túmulo de Antonio Silvino no Cemitério Monte Santo em Campina Grande PB